terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

AS DUAS ITÁLIAS


Sexta-feira, enquanto centenas de intelectuais, entre eles o dramaturgo Dario Fo, o romancista Antonio Trabucchi, as estrelas Franca Rame e Margherita Hack, se preparavam para uma grande manifestação em Roma, a fim de exigir a demissão de Berlusconi da chefia do governo italiano, o poderoso homem de negócios era acusado de estar por detrás do assassinato dos juizes Giovanne Falcone e Paolo Bersolini nos anos 90.


A manifestação, convocada pela internet, é mais importante, porque nenhum político poderá dela participar. Essa foi a decisão tomada pelos organizadores, para mostrar que se trata de um protesto de cidadãos, em defesa da dignidade da Itália. Da outra Itália, feita de grandes homens da ciência, da literatura, do humanismo – e não de assassinos, de criminosos que têm ocupado o Estado, de tiranos e bandidos, como foi Mussolini, e de seus êmulos menores, entre eles Andreotti e Sílvio Berlusconi.


São dois pesados golpes. A manifestação, se teve a magnitude que se esperava (escrevemos na sexta-feira), reuniu ontem pessoas de toda a Itália, que devem ter acorrido a Roma em mais de 700 ônibus, quatro trens especiais e um navio procedente da Sardenha. Temia-se pela repressão policial, na cidade que é governada por neofascistas.


Enquanto se organizava o encontro, em Torino, em sala de tribunal montada em búnker blindado, e sob pesada presença policial, o arrependido Gaspare Spatuzza acusava o primeiro ministro e o senador Marcelo Dell’Utri, de serem “a referência política” por detrás dos atentados que mataram, entre outras personalidades, os juizes Giovanne Falcone e Paolo Borsellino, em maio e em julho de 92. Os dois são acusados de mandatários do crime. “Meu arrependimento é a conclusão de um belíssimo percurso espiritual que se iniciou graças ao capelão do presídio de Ascoli Piceno e continuou em Áquila, onde me confessei com o arcebispo Giuseppe Molinari” – disse Spatuzza aos juízes. Ele parecia firme em seu depoimento. “Já matei mais de quarenta pessoas”, afirmou, depois de confessar que lhe coube arranjar o automóvel que, carregado de explosivos, matou o juiz Borsellino.

OS DIREITOS NECESSÁRIOS

Oscilamos, na História, entre iluminismos e trevas, entre o primado da razão da ética e a irrupção dos instintos primitivos. Na Bolívia, o governo de Evo Morales decidiu restituir às tribos indígenas o direito de fazer a justiça de acordo com suas próprias leis. Em algumas tribos, as comunidades parecem dispostas a seguir os próprios princípios imemoriais. Em outras, nas quais o contato com a civilização fez perder a memória antiga dos códigos ancestrais, as sentenças estarão submetidas aos humores dos juízes, sem normas claras e definidas.

Mesmo antes da sanção presidencial da lei, houve linchamentos decididos na jurisdição de algumas tribos. De acordo com a nova lei, das decisões tribais não haverá recurso para os tribunais republicanos. Enfim, depois de quase três séculos do último Iluminismo (porque outros houve na História), as garantias de um julgamento dentro dos devidos processos legais são abandonadas em uma república que leva o nome de Bolívar, um dos mais esclarecidos caudilhos das guerras da independência continental.

O episódio provoca a discussão entre o direito cultural das comunidades indígenas a manter suas próprias normas de convívio e a evolução das sociedades multiétnicas, como são as latino-americanas. Os antropólogos, de modo geral, querem manter intactas as sociedades primitivas, como os zoólogos se esforçam para defender as espécies ameaçadas de extinção, reservando-lhes espaços próprios em que existir de acordo com seus instintos. Até onde, em nome de respeito aos hábitos primitivos, devemos aceitar a violação dos direitos criados por alguns milênios de civilização? De acordo com as informações disponíveis, foram condenados ao linchamento mestiços e brancos, alguns deles, policiais.

Mas a violação dos direitos humanos, tal como eles foram codificados pela razão do Iluminismo, e transformados em princípios fundamentais das constituições modernas, a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Nacional Francesa em agosto de 1789, não se registra somente nas tribos bolivianas. A organização norte-americana de Médicos pelos Direitos Humanos (Physicians for Human Rights) está denunciando formalmente a CIA pela prática de torturas, durante o governo Bush. Os serviços secretos norte-americanos, como todos sabem, têm – e ratificado pelo festejado humanista Barack Obama – o direito de caçar e matar cidadãos norte-americanos em qualquer parte do mundo. Quanto aos estrangeiros, esse direito vem sendo praticado há mais de um século.

Os médicos documentaram a evidência de torturas praticadas por agentes da CIA, com a assistência médica. Eles, entre outras razões, apelam para a Resolução de Nuremberg, a propósito das experiências realizadas por médicos nazistas usando prisioneiros como cobaias. O protocolo de Nuremberg estabelece que nenhuma pessoa pode ser submetida a experiências sem o seu consentimento prévio, e sem o direito de interrompê-la quando quiser. O documento examina as técnicas de afogamento simulado – de que era especialista a polícia política de Stroessner – e de aplicação de choques que provocam a dor.

Em seu livro Theorie des gegenwärtigen Zeitalters (Teoria da época atual), Hans Freyer mostra como a atualidade acolhe todos os tempos humanos, no interior da “civilitas”, do processo civilizatório – conforme o conceito de Erasmo no princípio do século 16. Os linchamentos nos Andes, o bloqueio de Gaza e as torturas da CIA confirmam sua tese.

DAS ENGANOSAS SOLUÇÕES FINAIS

Quando os líderes nazistas se reuniram em Wannsee, em janeiro de 1942, não entraram em detalhes, não disseram o que todos já sabiam. Os testemunhos – entre eles o de Adolf Eichmann, ao depor em Israel – dão conta de que houve silencioso entendimento com relação à “solução final” para a questão judaica. O aniquilamento físico dos judeus já havia sido determinado por Hitler, muitos meses antes, e se encontrava em execução. Eichmann declarou ao seu interrogador Avner Less, em Israel, que Heydrich lhe comunicara que o Führer assim decidira. O interrogado, com sinceridade ou cinismo, disse ao policial israelita que ficara chocado ao ver judeus desnudos sendo colocados dentro de um ônibus absolutamente fechado e, assim mortos por gás, em Lodz, muitos meses antes da reunião de Wannsee. E que os sobreviventes eram fuzilados à beira de uma fossa, onde se despejavam todos os cadáveres. Provavelmente para tentar a simpatia de seu inquiridor, afirmou que reclamara do método a Muller: “Esta não é uma solução para o problema judaico. Mais do que isso, estamos transformando a nossa mesma gente em sádicos. Não será de espantar, de se surpreender, se nos tornarmos, todos nós, alemães, delinquentes, criminosos”.

Qual será a solução final para o problema palestino? No encontro dos nazistas, em janeiro de 1942, decidiu-se que o trabalho forçado, as câmaras de gás e os fornos crematórios seriam meios para reduzir o número de judeus, mas não para a solução final, que viria depois da vitória na guerra. Não podemos aceitar a ideia de que Israel pretenda a aniquilação total dos palestinos, depois dos meios que vem utilizando para reduzir o seu número, mediante as operações militares, com o uso de fósforo branco e o bloqueio continuado há anos, que impede a ajuda humanitária ao imenso gueto de Gaza.

Os judeus são um grande povo, e os judeus de Israel podem ser restituídos ao humanismo hebraico, a que o mundo deve poderosa contribuição – junto a outros humanismos, como os das religiões asiáticas, da fulgurante inteligência grega e, não por último, o do Islã. Esses governantes de Israel, por mais motivos tenham para repudiar a analogia, fazem lembrar aqueles que quiseram eliminar os judeus da História. Todos os seus atos levam à suspeita de que sua razão esteja contaminada pelo maniqueísmo de “eles, ou nós”. Para que vivam, é o que sua conduta revela, não aceitam conviver com o povo palestino a seu lado.

Há em Israel – e essa é uma esperança do mundo – os que contestam a política agressiva de seu governo. Soldados que se queixam do doutrinamento para o ódio, jornalistas que denunciam, todos os dias, o absurdo da guerra contra os palestinos, sábios e religiosos que sofrem ao ver a transformação de alguns de seus jovens em sádicos e alucinados guerreiros. Antes de sua “solução final” para o problema palestino, se é que a projetam, os israelenses terão que afrontar o duro conflito entre os dois lados de sua própria gente. Como os humanistas não se encontram armados, não é difícil prever o resultado.

O ataque aos navios que levavam ajuda humanitária a Gaza é mais um dos episódios que dilaceram a consciência do mundo. Todos nós somos culpados, porque não vemos, nos palestinos – e com a mesma solidariedade – o sofrimento que vimos um dia nos sobreviventes de Auschwitz-Birkenau, Treblinka, Dachau e Lodz.

Os palestinos, como qualquer outro povo, têm o direito de sobreviver e, tal como os judeus do Gueto de Varsóvia, o dever de resistir. Não há muitas evidências para a esperança, mas as cenas do ataque à frota internacional humanitária, que começam a ser divulgadas, reclamam a reação dos povos e dos governos contra Tel Aviv, e exigem sanções exemplares. Melhor seria que os próprios israelenses impusessem já a seus governantes o mínimo de lucidez para entenderem que os judeus fazem parte de uma só humanidade, e dela não se podem excluir, mediante pretendida diferença histórica ou religiosa. Não há, diante da vida – e de Deus para os que nele creem – judeus ou palestinos, árabes ou chineses. Há seres humanos. O Estado Militar de Israel não conta com Jeová. Conta com os Estados Unidos e suas próprias armas, entre elas, as nucleares.

DE COMO EXERCER A OUSADIA MORAL

Velha teoria explica as guerras generalizadas como inevitável irritação da História: as situações envelhecem e se tornam insuportáveis, para estourar nos conflitos sangrentos. Alguns as veem como autorregeneração do mundo, ao contribuir para o equilíbrio demográfico. Outros a atribuem à centelha diabólica que dorme no coração dos homens e incendeia o ódio coletivo. O mundo finará sem que entendamos a fisiologia do absurdo. Para os humanistas, são repugnantes os massacres coletivos tanto como os assassinatos singulares.

De qualquer forma, a História tem como eixo a tensão permanente entre guerra e paz; entre a competição e o entendimento; entre o egoísmo que se multiplica no racismo e a solidariedade internacional. Uma coisa é inegável: quando os mais fortes querem, não lhes faltam argumentos trôpegos para justificar a agressão. La Fontaine soube reduzir esse comportamento no diálogo entre o lobo e o cordeiro.


Quando o lobo quer, os filhos são responsáveis por falsas culpas dos pais e as águas sobem os rios. É interessante registrar, no episódio da questão do Irã, algumas dúvidas que assaltam o homem comum. A primeira delas – e devo essa observação a um amigo – é a do direito de os possuidores das armas atômicas decidirem quem pode e quem não pode desenvolver a tecnologia nuclear. Mais ainda, quando o árbitro maior é o governo do país que a usou criminosamente, ao arrasar, sem nenhuma razão tática ou estratégica, duas cidades inteiras e indefesas do Japão. Reduzidas as dimensões do absurdo, podemos aceitar como lícitas as associações criminosas, como as dos narcotraficantes dos morros. Possuidores de bom armamento, impõem sua lei às comunidades e constroem sua própria legislação, cobram tributos e exigem obediência, sob a ameaça dos fuzis e da tortura. Chegaremos assim a uma sociologia política, abonada indiretamente por Weber e outros, que admite todo poder de facto, sem discutir sua legitimidade ética.


O momento histórico é de grande oportunidade para a Humanidade – e de grande perigo, também. A República dos Estados Unidos é um lobo ferido em suas entranhas. Por mais disfarcem o choque, a eleição de Barack Hussein Obama lanhou as glândulas da tradição conservadora da Nova Inglaterra. A águia encolheu suas asas. A maioria dos estados e, neles, a maioria dos eleitores, decidiu por um homem mestiço, filho de pai negro e mãe branca, nascido em uma colônia dissimulada em estado, o Havaí; e que passou o período mais importante da formação, o da adolescência, na Ásia: na Indonésia muçulmana e no arquipélago em que nasceu.


No inconsciente coletivo, os Estados Unidos já sentem a decadência, que se acelerou com o neoliberalismo. Eles poderão administrá-la com inteligência, integrando-se em uma Humanidade que necessita, com urgência, de novos parâmetros e de nova tecnologia, capazes de preservar a natureza, hoje em acelerada erosão, ou entrar em desespero. Se entrarem em desespero, conduzirão o mundo a nova guerra, mas isso não parece provável, diante da crescente consciência antibélica de seu povo.

Por enquanto os falcões parecem contar com a Europa e com a China, no caso do Irã. Mas não há, nos horizontes movediços de hoje, país suficientemente forte, capaz de impor-se aos demais. A Europa desce a ladeira, com sua bolsa de euros de barro, e a União Europeia se encontra ameaçada de fragmentação. A China é uma nebulosa impenetrável. O capitalismo financeiro descolou-se de qualquer compromisso ético, se é que o teve um dia. O sistema se torna mais selvagem quando se vale dos instrumentos tecnológicos de operação universal e instantânea.


É nesse momento que a presença do Brasil começa a impor-se no cenário internacional. Não temos armas atômicas, não dispomos de exércitos numerosos e bem equipados, mas somos chamados a manter o bom-senso, e manter o bom-senso é exercer a ousadia moral.

Digam o que disserem os quislings domésticos, o Brasil ganhou o respeito do mundo ao buscar a paz no Oriente Médio. Se contribuirmos para evitar o conflito, nosso será o mérito; se não houver o êxito, fica, na História, o testemunho de um esforço destemido e honrado – e não menos meritório.

A DÉCADA DO PAVOR NA IDADE DO MEDO

O último ano do século passado – e o primeiro da década que se encerrou agora em 2010 – foi marcado pela decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a contagem de votos da Flórida. Ao garantir a posse de George Bush II, e legitimar a fraude, o tribunal colocou na Casa Branca o mais nefasto dos presidentes daquela república, desde o mandato de James Buchanan, que se tornou mais conhecido como rótulo de uísque do que como homem de Estado. À sua debilidade moral e política, a história debita a Guerra da Secessão. Aos dois Bush – mas principalmente ao filho – coube a responsabilidade da agressão desastrosa ao Iraque e ao Afeganistão, cujo desfecho é ainda imprevisível.

É cedo para saber exatamente o que ocorreu no dia 11 de setembro de 2001. Ao se admitir que o atentado tenha sido perpetrado pela Al Qaeda, ficou provado que Saddam Hussein nada tinha a ver com a organização muçulmana, dirigida por um antigo sócio da família Bush nos sempre viscosos e mal-cheirosos negócios do petróleo. Os próprios norte-americanos reconheceriam, depois, que seu país fora à guerra por causa do petróleo e do gás, do Oriente Médio e da Bacia do Cáspio. Quaisquer tenham sido os responsáveis, diretos e indiretos, pelo surpreendente atentado contra as Torres Gêmeas e os outros alvos, o efeito foi terrível, com a disseminação do pavor. Esse pavor serviu de pretexto para a guerra contra Bagdá, não obstante todos os esforços do governo de Saddam para evitar a invasão do país. Os Estados Unidos conseguiram seu objetivo, com a execução de Saddam Hussein, transmitida ao mundo inteiro, na madrugada de 30 de dezembro de há três anos – e o domínio do país e a exploração de seu petróleo.

Nas últimas horas, o pavor voltou aos Estados Unidos, com a tentativa de explodir um avião em sua descida em Detroit, por um rico nigeriano, na noite de Natal. Uma análise psicológica da vida do jovem – que agiu supostamente em nome da Al Qaeda do Iêmen – poderia encontrar razões poderosas para o seu fanatismo. Ele é filho de um milionário, que foi Ministro da Economia da Nigéria, cuja elite política é vista como das mais corruptas do mundo. Não são raros os casos de rebelião contra pais milionários, que levam a atos como os de Abdulmutallab. Suas confidências aos amigos fortalecem essa hipótese. O rapaz revelou sua profunda depressão, diante da realidade do mundo.

Mesmo frustrada, sua ação trouxe efeitos nos Estados Unidos, com o retorno do pânico. Obama determinou novas e rigorosas medidas, ao mesmo tempo em que reclamava dos serviços de segurança, pela sua incompetência. Conforme se revelou, o próprio pai havia prevenido as autoridades que o seu filho estava envolvido com movimentos islamitas, e a informação ficou em banho-maria na sede da CIA. Em seguida houve alarmes falsos em vários pontos dos Estados Unidos.

Ao medo se atribui quase toda a agressividade humana. As grandes nações, que se fizeram maiores mediante o emprego da força e da asfixia econômica, são as maiores vítimas do pânico, porque sua vulnerabilidade é proporcional ao próprio poder. Há também o temor da decadência. Nestes últimos dez anos, a China passou a ser uma grande potência – também militar – o que colocou em xeque a supremacia do Ocidente. Como a História nos revela, o domínio cultural é sempre resultado da hegemonia econômica. Em pouco mais de sessenta anos, a China deixou de ser a humilhada colônia da Inglaterra e de outras nações, para tornar-se um dos países mais industrializados do mundo, com um governo forte e intransigente na defesa de seus interesses. É crescente o medo que os chineses trazem ao Ocidente.

A tudo isso se acrescenta o temor à violência interna, provocada pelo grande mercado da droga – que movimenta bilhões no sistema financeiro. Em alguns países, entre eles, de forma dramática, o México e o Brasil, os traficantes de drogas e contrabandistas – a serviço de altos e discretos senhores - já contam com exércitos regulares, bem armados e adestrados, que buscam seus soldados na miséria da desigualdade social e aterrorizam as grandes cidades. Os Estados não têm conseguido manter o monopólio da violência, para a garantia da ordem da lei e da segurança de seus cidadãos. As elites políticas perderam o rumo, e as instituições estatais esperam os líderes que as possam restaurar.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A LIBERDADE E OS MUROS

Tenho as minhas memórias pessoais do muro de Berlim. Quando ele se levantou, minha mulher e eu visitamos a Alemanha Oriental e me explicaram a providência como forma de impedir o desastre econômico: os habitantes de Berlim Ocidental, recebendo em dinheiro do Ocidente capitalista, trocavam por marcos orientais, no câmbio negro, atravessavam as ruas e se abasteciam de tudo no mercado socialista, com preços administrados pelo Estado. Não só se abasteciam as famílias, como os pequenos comerciantes. Isso causava grave problema para a economia socialista. Não deixava de ser uma explicação. Além disso, havia os cidadãos de Berlim Oriental que atravessavam para o outro lado, todos os dias, a fim fazer o contrabando no sentido inverso, de drogas e artigos de luxo.

Quando o muro caiu, nós vivíamos em Roma. A sua demolição, que antecedeu a queda do sistema soviético, foi saudada como nova era de felicidade no mundo – menos para alguns. Já se sabia que houvera poderosa conspiração internacional entre Reagan e o papa Wojtyla, envolvendo o Banco Ambrosiano, a C.I.A. e o Solidarinosc, com a cumplicidade de Gobartchev, contra os países socialistas. O resultado é conhecido: o sistema soviético se desfez e o homem da glasnost e da perestróika pôde sentir-se realizado, como garoto-propaganda de pizzas e de bolsas Louis Vuitton, nos meios de comunicação dos Estados Unidos.

Ainda nestes dias, os chineses descobriram um trecho considerável da Grande Muralha, que ficou oculto durante séculos. Era uma proteção contra os inimigos. As cidades medievais eram cercadas de muros, como ainda podem ser vistos. Um longo muro separa o México dos Estados Unidos e outro, de grandes proporções, separa Israel dos territórios palestinos. A sua construção, queiram ou não, obedece às mesmas razões pelas quais os alemães do leste erigiram o seu. No Rio, pretendem levantar cercas, a fim de controlar as favelas. Os novos e ricos condomínios urbanos brasileiros se fazem cercar de muralhas, protegidas eletronicamente, com sentinelas atentas e armadas, de trecho a trecho, imitando a famosa Linha Maginot, que os alemães desdenharam, ao invadir a França pela Bélgica. Estamos todos cercados de muros, circulamos nas cidades dentro de veículos – que são muralhas de aço blindado; no alto dos edifícios, em seus corredores, nos elevadores, as câmaras vigiam, como as seteiras das antigas muralhas. As muralhas mais sólidas e impenetráveis são as ocultas, que separam os homens ricos dos homens pobres. Um longo e invisível muro – semelhante à linha de Leibniz – passa pelas ruas, penetra as igrejas e ladeia os pontos, ou seja, as pessoas, deixando, em campos separados, por mais próximos pareçam estar, uns homens e os outros.

AS LISONJAS E O RESPEITO

Os elogios que partem do estrangeiro ao desempenho da economia brasileira devem ser recebidos com cautela. Se observarmos bem, eles não se destinam à nossa autonomia na administração do Estado, nem aos esforços a fim de reduzir as penosas desigualdades sociais que nos constrangem, mas ao fato de que continuamos (o que não é verdade inteira) a política de abertura do governo passado.

Ainda agora, o presidente Lula é agraciado, na Chattam House, em Londres, e, em Madri, a Fundação Marcelino Botin, do Banco Santander, encerrou, ontem, um seminário sobre o Brasil, visto como futura “potência latina”, desde, é claro, que mantenha abertas as suas portas aos investimentos estrangeiros. O Banco Santander, graças ao Brasil, é hoje o maior banco espanhol e um dos maiores do mundo. Como todos se recordam, o Santander adquiriu o Banco do Estado de S. Paulo, em uma operação ainda não muito clara. Antes, já havia adquirido outros bancos menores. E depois, adquiriu bancos maiores, entre eles o Amro. A Fundação Marcelino Botin é também presidida pelo Sr. Emílio Botin, principal acionista do Santander, que também acompanha, com empresários brasileiros, a visita de Lula à Inglaterra. Há poucas semanas, o Santander Brasil aumentou seu capital, de mais de 49 bilhões de reais a mais de 61 bilhões.

Os mineiros ficam sempre desconfiados quando recebem excessivos elogios. A pergunta que se fazem é: o que estão querendo de mim? O que estão querendo do Brasil, com essa série de elogios, não só a seu presidente, mas ao país? Os espanhóis se encontram em uma situação econômica complicada, como todos sabem, e eles não conseguem escondê-la. Por que se interessarem tanto pela economia brasileira, a ponto de promover a reunião em Madri, com a presença de brasileiros, alguns membros do governo, e especialistas estrangeiros, em lugar de discutir profundamente as causas da recessão em seu próprio país?

O jornal El Pais publicou ontem um artigo do jornalista conservador Federico Ysart Alcover, diretor do Observatório de Análises e Tendências da Fundação M. Botin, que promoveu o encontro sobre o Brasil. Nada pode ser mais explícito. Ele pergunta se o Brasil está disposto realmente a transformar-se em uma potência e esclarece, que, para isso, a sociedade e o governo devem continuar a política do governo anterior, de abertura dos mercados aos estrangeiros, e aprofundar a globalização. É interessante que se faça o elogio do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, nas mesmas horas em que o ex-presidente entra em cena com seu artigo-plataforma. Federico Ysart é homem ligado ao Banco Santander há muitos anos, e pertenceu ao governo conservador de Adolfo Suarez. Foi, ainda, deputado federal pela UCD. E lhe coube coordenar o encontro de Madri, ontem concluído.

O banqueiro Emílio Botín é filho e neto de banqueiros da Cantábria, e não esconde que deu a sua maior jogada ao entrar no mercado financeiro brasileiro. Está sempre em nosso país, onde transita com grande desenvoltura, sendo figura constante nas festas e outros eventos sociais. O rei Juan Carlos concedeu, recentemente, à sua esposa, a pianista Paloma O’Shea, o título de Marquesa de O’Shea, o que fez de Emilio Botin o Marquês Consorte de O’Shea.

Desde o fim do franquismo, com a morte do ditador e a assunção do poder por Adolfo Suarez, os espanhóis decidiram recolonizar a América Latina. Os governos – incluídos os socialistas -, a partir de então, passaram a investir tudo nessa ofensiva, financiando a compra de empresas em nosso continente, mesmo à custa do aumento brutal de sua dívida pública, uma das maiores do mundo. Com a velha arrogância ibérica, chegaram a tratar governantes de nossos países como vassalos, como fez o direitista Aznar com o presidente Duhalde, da Argentina, a quem telefonava dando ordens e exigindo explicações. E nem vale a pena lembrar o “por qué no te callas” de Juan Carlos, em inaceitável ofensa ao presidente da Venezuela. Enquanto o desemprego grassa na Espanha, seus empresários enchem os bolsos com os lucros obtidos em nossos países. Aqui, a Telefônica disputa a compra da GVT, para ampliar, ainda mais, a sua presença na telefonia brasileira. O seminário de Madri deve ser visto dentro desse quadro de fundo. É melhor dispensar as lisonjas, que soam interessadas, e criar instrumentos jurídicos e políticos que lhes fechem o caminho.