sexta-feira, 24 de agosto de 2012

QUANDO OS SOLDADOS PREFEREM MORRER


Em julho passado, revelam fontes oficiais, 38 militares norte-americanos se mataram. Um aumento de mais de 100% sobre os casos de suicídio do mês anterior. Vinte e dois deles se encontravam em serviço. Os demais haviam voltado para casa, mas já não se sentiam em seus lares. Eram outros homens, desfeitos e refeitos pelo horror.

Provavelmente não se sentissem combatentes por sua pátria ou suas idéias, e, sim, meros mercenários, enviados para assassinar em nome de interesses que nada têm a ver com os de seu povo. Salvo nas duas guerras mundiais, quando justa era a luta contra os alemães e o nazismo, os soldados ianques lutam por Wall Street. O genocídio inútil de Hiroxima e Nagasáki, ao manchar com a desonra o combate pelos valores humanos, confirmou os exércitos dos EUA como bandos de pistoleiros do imperialismo.

Os Estados Unidos nunca tiveram que lutar em seu solo, a não ser na Guerra da Independência. Sempre invadiram o solo alheio, a partir da guerra contra o México, em 1846, quando anexaram mais de 40% do território do país vencido. A Guerra da Independência, bem antes, se travara contra homens iguais, da mesma etnia, da mesma fé, e poderíamos dizer, quase das mesmas idéias. O mesmo veio a ocorrer no conflito interno, o da Guerra da Secessão, apesar da crueldade dos combates e a bandeira ética do Norte contra a escravocracia do Sul.

Esse enorme privilégio – o de não conhecer as botas dos ocupantes estrangeiros – transformou-se em maldição. Os militares ianques já não encontram na alma, desde a derrota no Vietnã, quaisquer razões para a luta. Assim, são corridos pela depressão, ou se transformam em animais, como os que se deixaram fotografar em Abu Ghraid, com seus cães. A depressão os leva a desertar das fileiras, de forma absoluta, ao estourar a cabeça ou o coração com suas próprias armas.

O filósofo espanhol Ortega y Gasset tem uma tese interessante sobre os militares e as guerras. Ele considera o cerco de Granada, pelos Reis Católicos, em 1492 – o mesmo ano da descoberta da América por Colombo – como o fim do soldado que combatia com honra, e o início do soldado “técnico”, que atua como simples extensão de sua arma.

No cerco de Granada, e na vitória que se seguiu, os castelhanos usaram o planejamento tático e estratégico, superando, e em muito, os gregos e os romanos no projeto de suas operações. Segundo Ortega, ali morreu a bravura, e nasceu o combatente moderno, mera máquina de matar, sem honra e sem sentimentos, a não ser os do ódio induzido.

Os soldados americanos que se matam, torturados pelo remorso, talvez sigam o lema que os japoneses inscrevem nos sabres destinados ao harakiri: saiba morrer com honra quem com honra não soube viver.

O EQUADOR NÃO PODE FICAR SÓ


Este é o momento para que a unidade sulamericana deixe a retórica para tornar-se realidade. Cabe ao continente manter-se ao lado do povo equatoriano, na defesa de sua soberania política. A consolidação da Unasul se impõe, e com urgência. Diante da ameaça aberta do governo britânico, de invadir a Embaixada do Equador em Londres, o governo de Quito, pelo seu chanceler, declarou que confirma o asilo concedido a Julián Assange em seu território (que se estende ao recinto modesto de sua embaixada junto ao Reino Unido). Os ingleses, em sociedade com os Estados Unidos, ainda se consideram senhores do mundo. O criador do WikiLeaks se encontra sob a ameaça de ser entregue ao governo norte-americano. Os ianques querem vingar o fato de que Assange tornou transparentes suas intrigas e seus crimes.

A nota do governo britânico, entregue anteontem à embaixadora do Equador, é ameaça clara e brutal ao Equador. O “aide-mémoire”,entregue à Embaixadora Ana Albán, convocada ao Foreign Office para recebê-lo, é objetivo em sua crueza:

“Devemos reiterar que consideramos o uso continuado de instalações diplomáticas, desta maneira, incompatível com a Convenção de Viena e insustentável, e que já deixamos bem claro suas sérias implicações em nossas relações diplomáticas. Devem estar conscientes de que há uma base legal no Reino Unido – a Lei sobre Instalações Diplomáticas e Consulares, de 1987 – que nos permitiria agir para prender o Sr. Assange nas instalações atuais da Embaixada”.

É preciso deixar claro que a Convenção de Viena, de 1962, proíbe claramente essa invasão dos locais diplomáticos, conforme seu artigo 22:

1. Os locais da Missão são invioláveis. Os Agentes do Estado acreditado não poderão neles penetrar sem o consentimento do Chefe da Missão.

“2. O Estado acreditado tem a obrigação especial de adotar todas as medidas apropriadas, para proteger os locais da Missão contra qualquer intrusão ou dano, e evitar perturbações à tranqüilidade da Missão ou ofensas à sua dignidade.

3. Os locais da Missão, em mobiliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da Missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução”.

Nenhuma lei interna de país aderente a convenção internacional dessa magnitude, pode sobrepor-se ao Tratado. Nos 50 anos de sua vigência, isso nunca ocorreu. O governo equatoriano não tinha outra atitude, a fim de resguardar a sua soberania, que não fosse tornar, de jure, o asilo de fato que concedera a Assange. Há momentos em que todos os cidadãos honrados de uma nação se tornam um só homem, aquele que, sob sua delegação, chefia o Estado. A decisão de Rafael Correa, exposta por seu chanceler Ricardo Patiño, é a mesma que qualquer país latino-americano que se preze tomaria.

Nós temos uma tradição histórica na concessão de asilo diplomático, que é invariável: não se discute o comportamento do perseguido, mas a sua condição humana e o perigo, a juízo do país concedente, de que o postulante seja submetido a tratamento cruel, ou à pena de morte. Foi assim que o governo democrático brasileiro não titubeou em conceder asilo ao ditador Alfredo Stroessner, em 1989, durante a presidência de Sarney.

Se nós, brasileiros, não tivéssemos outras razões para guardar reservas contra os ingleses, há uma, poderosa. Em seu livro “The Rise and Fall of the British Empire” (Londres, 1995, página 5), o historiador britânico Lawrence James registra, como um dos primeiros episódios da ascensão de seu país ao domínio do mundo, o assalto cometido por George White, de Dorset, dono do veleiro Catherine, de 35 toneladas, armado de cinco canhões e avaliado em 89 libras, segundo o autor. Em 1590, White se apoderou de três cargueiros brasileiros, em alto mar, desarmados e sob bandeira espanhola, roubando sua carga avaliada em 3.600 libras. Encorajado com o resultado do roubo, vendeu o Catherine, comprou navio mais poderoso e continuou a saquear navios brasileiros e do Caribe, sempre indefesos.

A Inglaterra confia na força, mas a História nos mostra que a melhor forma de garantir, com honra, a própria soberania, é a de respeitar a soberania e a honra dos outros.

Quando encerrávamos estas notas, o chanceler britânico William Hague declarou que seu governo não invadirá a embaixada do Equador. Como se começa a ver, a ameaça foi um ato de arrogância contra um país desarmado.