segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A LIBERDADE E OS MUROS

Tenho as minhas memórias pessoais do muro de Berlim. Quando ele se levantou, minha mulher e eu visitamos a Alemanha Oriental e me explicaram a providência como forma de impedir o desastre econômico: os habitantes de Berlim Ocidental, recebendo em dinheiro do Ocidente capitalista, trocavam por marcos orientais, no câmbio negro, atravessavam as ruas e se abasteciam de tudo no mercado socialista, com preços administrados pelo Estado. Não só se abasteciam as famílias, como os pequenos comerciantes. Isso causava grave problema para a economia socialista. Não deixava de ser uma explicação. Além disso, havia os cidadãos de Berlim Oriental que atravessavam para o outro lado, todos os dias, a fim fazer o contrabando no sentido inverso, de drogas e artigos de luxo.

Quando o muro caiu, nós vivíamos em Roma. A sua demolição, que antecedeu a queda do sistema soviético, foi saudada como nova era de felicidade no mundo – menos para alguns. Já se sabia que houvera poderosa conspiração internacional entre Reagan e o papa Wojtyla, envolvendo o Banco Ambrosiano, a C.I.A. e o Solidarinosc, com a cumplicidade de Gobartchev, contra os países socialistas. O resultado é conhecido: o sistema soviético se desfez e o homem da glasnost e da perestróika pôde sentir-se realizado, como garoto-propaganda de pizzas e de bolsas Louis Vuitton, nos meios de comunicação dos Estados Unidos.

Ainda nestes dias, os chineses descobriram um trecho considerável da Grande Muralha, que ficou oculto durante séculos. Era uma proteção contra os inimigos. As cidades medievais eram cercadas de muros, como ainda podem ser vistos. Um longo muro separa o México dos Estados Unidos e outro, de grandes proporções, separa Israel dos territórios palestinos. A sua construção, queiram ou não, obedece às mesmas razões pelas quais os alemães do leste erigiram o seu. No Rio, pretendem levantar cercas, a fim de controlar as favelas. Os novos e ricos condomínios urbanos brasileiros se fazem cercar de muralhas, protegidas eletronicamente, com sentinelas atentas e armadas, de trecho a trecho, imitando a famosa Linha Maginot, que os alemães desdenharam, ao invadir a França pela Bélgica. Estamos todos cercados de muros, circulamos nas cidades dentro de veículos – que são muralhas de aço blindado; no alto dos edifícios, em seus corredores, nos elevadores, as câmaras vigiam, como as seteiras das antigas muralhas. As muralhas mais sólidas e impenetráveis são as ocultas, que separam os homens ricos dos homens pobres. Um longo e invisível muro – semelhante à linha de Leibniz – passa pelas ruas, penetra as igrejas e ladeia os pontos, ou seja, as pessoas, deixando, em campos separados, por mais próximos pareçam estar, uns homens e os outros.

AS LISONJAS E O RESPEITO

Os elogios que partem do estrangeiro ao desempenho da economia brasileira devem ser recebidos com cautela. Se observarmos bem, eles não se destinam à nossa autonomia na administração do Estado, nem aos esforços a fim de reduzir as penosas desigualdades sociais que nos constrangem, mas ao fato de que continuamos (o que não é verdade inteira) a política de abertura do governo passado.

Ainda agora, o presidente Lula é agraciado, na Chattam House, em Londres, e, em Madri, a Fundação Marcelino Botin, do Banco Santander, encerrou, ontem, um seminário sobre o Brasil, visto como futura “potência latina”, desde, é claro, que mantenha abertas as suas portas aos investimentos estrangeiros. O Banco Santander, graças ao Brasil, é hoje o maior banco espanhol e um dos maiores do mundo. Como todos se recordam, o Santander adquiriu o Banco do Estado de S. Paulo, em uma operação ainda não muito clara. Antes, já havia adquirido outros bancos menores. E depois, adquiriu bancos maiores, entre eles o Amro. A Fundação Marcelino Botin é também presidida pelo Sr. Emílio Botin, principal acionista do Santander, que também acompanha, com empresários brasileiros, a visita de Lula à Inglaterra. Há poucas semanas, o Santander Brasil aumentou seu capital, de mais de 49 bilhões de reais a mais de 61 bilhões.

Os mineiros ficam sempre desconfiados quando recebem excessivos elogios. A pergunta que se fazem é: o que estão querendo de mim? O que estão querendo do Brasil, com essa série de elogios, não só a seu presidente, mas ao país? Os espanhóis se encontram em uma situação econômica complicada, como todos sabem, e eles não conseguem escondê-la. Por que se interessarem tanto pela economia brasileira, a ponto de promover a reunião em Madri, com a presença de brasileiros, alguns membros do governo, e especialistas estrangeiros, em lugar de discutir profundamente as causas da recessão em seu próprio país?

O jornal El Pais publicou ontem um artigo do jornalista conservador Federico Ysart Alcover, diretor do Observatório de Análises e Tendências da Fundação M. Botin, que promoveu o encontro sobre o Brasil. Nada pode ser mais explícito. Ele pergunta se o Brasil está disposto realmente a transformar-se em uma potência e esclarece, que, para isso, a sociedade e o governo devem continuar a política do governo anterior, de abertura dos mercados aos estrangeiros, e aprofundar a globalização. É interessante que se faça o elogio do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, nas mesmas horas em que o ex-presidente entra em cena com seu artigo-plataforma. Federico Ysart é homem ligado ao Banco Santander há muitos anos, e pertenceu ao governo conservador de Adolfo Suarez. Foi, ainda, deputado federal pela UCD. E lhe coube coordenar o encontro de Madri, ontem concluído.

O banqueiro Emílio Botín é filho e neto de banqueiros da Cantábria, e não esconde que deu a sua maior jogada ao entrar no mercado financeiro brasileiro. Está sempre em nosso país, onde transita com grande desenvoltura, sendo figura constante nas festas e outros eventos sociais. O rei Juan Carlos concedeu, recentemente, à sua esposa, a pianista Paloma O’Shea, o título de Marquesa de O’Shea, o que fez de Emilio Botin o Marquês Consorte de O’Shea.

Desde o fim do franquismo, com a morte do ditador e a assunção do poder por Adolfo Suarez, os espanhóis decidiram recolonizar a América Latina. Os governos – incluídos os socialistas -, a partir de então, passaram a investir tudo nessa ofensiva, financiando a compra de empresas em nosso continente, mesmo à custa do aumento brutal de sua dívida pública, uma das maiores do mundo. Com a velha arrogância ibérica, chegaram a tratar governantes de nossos países como vassalos, como fez o direitista Aznar com o presidente Duhalde, da Argentina, a quem telefonava dando ordens e exigindo explicações. E nem vale a pena lembrar o “por qué no te callas” de Juan Carlos, em inaceitável ofensa ao presidente da Venezuela. Enquanto o desemprego grassa na Espanha, seus empresários enchem os bolsos com os lucros obtidos em nossos países. Aqui, a Telefônica disputa a compra da GVT, para ampliar, ainda mais, a sua presença na telefonia brasileira. O seminário de Madri deve ser visto dentro desse quadro de fundo. É melhor dispensar as lisonjas, que soam interessadas, e criar instrumentos jurídicos e políticos que lhes fechem o caminho.

DA IGUALDADE ENTRE AS NAÇÕES

O orgulho nacional é sentimento que se funda na consciência da igualdade entre os seres humanos. Quando partimos da idéia de que não somos superiores, assiste-nos a certeza de que tampouco somos inferiores. As vicissitudes históricas, assim como as limitações da natureza, podem fazer-nos conjunturalmente mais pobres ou mais ricos, mas não nos convertem em melhores ou piores. A imprensa do mundo se tem dedicado aos êxitos conjunturais do Brasil com elogios que nos alegram. O Presidente Lula é visto como a Personalidade do Ano pelo conceituado Le Monde, e outras publicações. Chefes de Estado a ele se referem com admiração, não só pelos resultados de sua política interna, como também por sua capacidade de convencimento na diplomacia direta que vem exercendo, nestes meses de desafios internacionais. Esse reconhecimento externo tem tido leituras divergentes em nosso país. Para muitos adversários do governo, trata-se de engodo. A oposição quer mostrar o Presidente da República como um parvo, que se deixa dominar pela lisonja. É uma leitura, essa, sim, de néscios. O governo brasileiro tem, nestes anos e meses, afirmado, sem jactâncias, seu direito soberano de opinar nas questões internacionais que lhe dizem respeito, como as do aquecimento global, da paz no Oriente Médio, do comércio internacional e do equilíbrio geopolítico na América Latina. Quanto ao problema da preservação ecológica, nenhum outro país do mundo tem a autoridade de que dispomos para dizer o que pensamos. A História nos fez possuidores da maior biodiversidade tropical do planeta, que soubemos preservar com diplomacia, mas também com imensos sacrifícios humanos, e de cuja soberania não podemos renunciar. Queremos parceiros no comércio internacional, com vantagens e concessões em rigorosa reciprocidade. Quanto à América Latina, não podemos aceitar a sub-gerência imperial que alguns nos pretendem impor. Não somos o “cachorro grande” do quarteirão, como certos ex-diplomatas se referem à posição econômica, geográfica e política do Brasil. Somos vizinho privilegiado, com fronteiras pacíficas com quase todos os países da América do Sul e não temos problemas com o resto do Hemisfério. O Embaixador Rubens Barbosa, que, ao se afastar compulsoriamente do Itamaraty, se dedica hoje a assessorar a Fiesp, assinou artigo sobre a Argentina que trata do declínio do grande vizinho do Sul. Há, em seu texto - ainda que dissimulada em linguagem diplomática - referência àsuperioridade brasileira, o que não é bom para nós. Temos que entender as circunstâncias da Argentina que, a partir da queda de Hipólito Irigoyen, em 1930, vem passando por dificuldades institucionais, em situação pendular entre o peronismo e seus adversários, agravada com a tragédia dos governos militares, estimulados pelos norte-americanos. Tanto como o nosso, o povo argentino tem direito à auto-estima. Seu sistema educacional, reconhecidamente superior, sua cultura, seu desenvolvimento técnico e científico, são motivos de justo orgulho. Suas dificuldades são políticas, e serão resolvidas com a mobilização da cidadania. Rubens Barbosa diz que a Argentina pode escolher entre ser – diante do Brasil – o Canadá ou o México. É melhor que ela continue sendo a Argentina do Pacto ABC, a Argentina do Mercosul, a Argentina das mães da Praça de Maio, de Borges e Bioy Casares, de Cortazar e Carlos Gardel; a Argentina de San Martin, de Urquiza e de Mitre. E de Evita. O México é outra referência infeliz do Embaixador. Seu povo é uma vítima histórica, de Cortez ao Presidente Polk, e de Polk a Bush, com o Nafta. Sua tragédia é estar, como dizia Cárdenas, tan lejos de Dios y tan cerca de Estados Unidos. O Ministro Nelson Jobim prevê represálias contra o Brasil pelos paises preteridos na compra de caças para a FAB. Temos o direito soberano de comprar o que nos interessa e onde nos interessa. Sua excelência, no entanto, disse que “corremos o risco de país grande”. Se ele nos adverte que devemos nos preparar contra isso, ele tem razão. Mas convém observar que nossa grandeza está dentro das fronteiras nacionais e no convívio amistoso com os outros povos. É esse convívio, sereno, sem ser subalterno, firme, sem ser arrogante, que está sendo reconhecido no mundo inteiro. Dessa postura, que o Itamaraty expressa, não nos devemos afastar.

DOIS SOLDADOS

Em algum lugar de Gaza, um rapaz de 23 anos está diante de sua solidão. É um prisioneiro de guerra. Tinha 19 anos, em 25 de junho de 2006, quando fazia parte de ofensiva de tanques contra a Faixa de Gaza. Como soldado, foi capturado – fato comum em todas as guerras da História. Israel o considerou “seqüestrado”, e isso é mais do que dissimulação semântica: é a agravante da mentira. Para obrigar os palestinos a libertá-lo, Israel realizou sua devastadora invasão de fim do ano passado contra os palestinos de Gaza.

Galid Shalit é vítima da guerra, como os jovens palestinos que morreram há um ano em Gaza. É tão vítima quanto o soldado norte-americano Bowe Robert Bergdahl, capturado pelos talebãs há seis meses. Como prisioneiros, sua condição é a mesma dos palestinos e afegãos, sitiados pelo poder desmesurado dos mesmos inimigos.

Nestas horas, o soldado Gilad Shalit é, para a consciência moral do mundo, mais um palestino. É um jovem, construído pela ideologia do ódio, para matar os palestinos e que, de repente, se vê seu prisioneiro. Sua sorte passou a ser a sorte de seus adversários; sua liberdade depende da liberdade de centenas deles. É um ser humano, da mesma Palestina em que um jovem anunciou o tempo novo, o tempo do amor entre todos os seres humanos.

O TRANSITÓRIO E O DURADOURO

Prevaleceu o bom senso, e a Comissão de Relações Exteriores do Senado aprovou a entrada da Venezuela no Mercosul. Há os que se opõem a esse ingresso e, em passado recente, pretendiam que aderíssemos ao Alca. O tratado de livre comércio das Américas, como o desejavam os norte-americanos, seria, para repetir o guatemalteco Juan Arévalo, a associação entre as sardinhas e o tubarão. A adesão do México ao Nafta representou a desnacionalização da indústria, o aumento da criminalidade, a repercussão dramática da crise econômica norte-americana em seu território. O México perdeu 15% dos empregos existentes em 1994 e, só no ano passado, 6290 pessoas foram assassinadas na guerra do narcotráfico.
O presidente Chávez tem surpreendido os meios políticos com seu comportamento inusitado. Sua eleição constituiu a quebra de um paradigma. Mas essa quebra de paradigma não ocorreu somente na Venezuela. No mundo inteiro, o eleitorado tem preferido, nos últimos decênios, homens que fogem aos modelos clássicos de chefes de estado e de governo do século 19 e início do século 20. São homens que não se identificam com o que convencionamos chamar establishment. Esses homens novos, para usar o léxico político romano, não constituem privilégio da esquerda. A direita também os elege, mais do que a esquerda e, talvez, tenha a ela cabido o privilégio de inaugurar o costume, quando fez do caubói Ronald Reagan o presidente dos Estados Unidos em 1980. Quebrou-se, na mesma ocasião, o paradigma na Inglaterra, com a eleição de Mme. Thatcher para ocupar o gabinete de Downing Street, que havia sido, só no século passado, de Lord Balfour e de Lloyd George, de Churchill, Harold Wilson e Bevan. E que dizer de nossos dias, com Berlusconi e Sarkozy? E não nos esqueçamos de Barack Hussein Obama – talvez o que intelectualmente mais se aproxime do modelo clássico dos governantes do passado.
A História registra quebras anteriores de paradigma, mas geralmente localizados e episódicos, como ocorreu com a eleição de Andrew Jackson, nos Estados Unidos de 1828. Quebra de paradigma é também a presença de Lula, no Alvorada. Argumentam, os adversários da inclusão da Venezuela no Mercosul, que o regime, ali, não é democrático. Mas, o que é mesmo democracia? Se os destacados adversários da Venezuela conseguissem defini-la com precisão, resolveriam um dos problemas básicos da ciência política. Em termos pragmáticos – e não acadêmicos - democracia é aquele regime que nos convém, e não democrático aquele que não nos agrada. Há democracias e democracias. Seria, por exemplo, democrático o governo da Itália, cujo primeiro ministro controla mais da metade do poder de informação no país? Em sua melhor definição, a democracia rejeita adjetivos, e os rejeita porque é um processo – e os processos não admitem qualificações definitivas.
É preciso separar o transitório do duradouro, já que na política, como na vida em geral, não há situações permanentes. O presidente Chávez é um inquilino do Palácio de Miraflores, como outros houve, desde a tumultuada independência da região. Como em todos os paises do continente, a história da Venezuela oscila entre o despotismo das oligarquias e a resistência dos pobres. Houve governos que lutaram pela democracia republicana e pela igualdade, como os de Rômulo Bentacourt e Rômulo Gallegos. E ditaduras militares impostas pelos golpes de estado, como a de Perez Jimenez. E há o clássico exemplo da corrupção insuportável de governos que começaram bem, como ocorreu com Carlos Andrés Perez. Se Chávez e sua forma particular de governo são realidades transitórias, a Venezuela é duradoura. Hoje, a Venezuela é um dos mais importantes parceiros comerciais do Brasil, e, acima dos preconceitos contra o índio Chávez prevalecem os interesses dos grandes empresários brasileiros, que exportam bens e serviços para aquele país. E, da mesma forma, os nossos objetivos nacionais permanentes.

A DIFÍCIL RETIRADA

A escalada da resistência dos talibãs e dos iraquianos demonstra que as guerras não se vencem apenas com a força militar. As guerras são movimentos que exigem das nações o máximo de sua potência moral. Na versão de Salústio, Caio Mário, o grande general plebeu, convoca seus comandados, para a guerra contra Jugurta, dizendo-lhes que nenhum homem coloca um filho no mundo com a presunção de que possa ser eterno, mas com a esperança de que venha a ser honrado.

De retorno a Roma, ao passar sob os arcos de triunfo, os combatentes eram a própria pátria que se honrava; nela se integravam no instante da glória. Segundo o New York Times, o principal homem da CIA no Afeganistão é Ahmed Wali Karzai, irmão do próprio presidente do país. Ahmed é o maior traficante de ópio do país. E o governo pretende tentar no Afeganistão o que não deu certo no Iraque: comprar os inimigos com dinheiro vivo. Com a corrupção formam governos, com a corrupção os sustentam e os derrubam, quando lhes convém.

Bush disse que ia ao Iraque, matar Hussein, porque ouvira de Deus essa ordem. Mais tarde confessou indiretamente que a guerra se devia ao vício norte-americano pelo petróleo. Como reza um provérbio persa, mesmo o mais falso dos homens diz uma verdade na vida. Consumindo mais de 12 milhões de barris de petróleo por dia, seu governo, a serviço dos donos do poder, tem que buscá-lo onde quer que o encontre. É famosa a frase de Kissinger, para justificar a espoliação dos paises periféricos: “Os países industrializados não poderão viver, se não tiverem à sua disposição os recursos naturais não renováveis do planeta. Terão que montar sistema de pressões e constrangimentos que garantam os seus objetivos”. Quando essas pressões, constrangimentos políticos e econômicos se frustram, partem para o golpe, os atentados, a guerra.

O presidente Obama está vivendo os piores dias de seu primeiro ano de governo. É evidente a pressão dos militares, exercida pelo general McChrystal, para que Washington envie mais tropas ao Afeganistão. Ocorre que de nada adianta o sangue norte-americano que vem escorrendo no Afeganistão e no Iraque, em troca de petróleo e gás, quando os governantes títeres dos invasores se putrefazem na corrupção e no tráfico de ópio. Depois do atentado de anteontem em Kabul, contra o escritório da ONU, noventa e duas pessoas morreram no mercado de Peshawar, no Paquistão, que estava apinhado. Os Estados Unidos e a Otan não terão tropas para enfrentar essa ampliação do conflito.

É famosa a constatação do irreverente – mas, assim mesmo, grande estadista – que foi Georges Clemenceau: a guerra é uma coisa grave demais para ser confiada aos militares. Sendo uma decisão política, deve ser politicamente conduzida. Obama se vê pressionado pelos democratas, aos quais se unem moderados republicanos, a encontrar uma forma de se retirar da região, mas os falcões recebem sua ração de arenga por parte de Dick Cheney e outros membros do governo anterior. Os Estados Unidos cumpriram um grande destino, em benefício de grande parcela de seu povo. Sendo um país de imigrantes, venceu, com o tempo – e com o sangue – muitos dos preconceitos raciais que o manchavam. Mas terão que buscar o melhor caminho a fim de renunciar à idéia de que são os árbitros e senhores do mundo. O presidente Obama, sob a pressão constante dos que reclamam o avanço da democracia social e dos que a isso se opõem, tenta ganhar algum tempo, e é provável que tema, como temeram alguns de seus predecessores, o fanatismo dos conservadores, sempre alimentado pelos grandes interesses das corporações financeiras, industriais e militares. Cabe-lhe ainda administrar o pânico previsto diante da gripe suína – cuja ameaça cresce com o inverno nórdico - , a reação poderosa do complexo farmacêutico-hospitalar contra a ampliação do seguro médico oficial e a crise econômica, que se expressa nos crescentes déficits do Tesouro.

O mito da invencibilidade bélica norte-americana está, mais uma vez, à prova. Ele foi desmentido na Coréia, na Baía dos Porcos, no Vietnã – e até mesmo na Somália. E está sendo desmentido no Iraque e no Afeganistão – com maiores conseqüências geopolíticas do que no passado. Quanto ao guerreiro Bush, de acordo com o que ele mesmo revelou, anteontem, em público, se compraz em rezar, passear com seu cachorro pelas ruas de Dallas, e, como bom cidadão, recolher as fezes do animal pelo caminho.

A EMERSÃO DA ÁFRICA

Como tudo começou na África, é provável que na África se complete o destino humano. Os primeiros seres humanos surgiram ali. As alterações em sua aparência foram provocadas pela graduação da latitude terrestre, para onde migraram os grupos nômades. No Norte da África nasceram os assentamentos agrícolas e uma singular e pioneira civilização, a dos egípcios, no Vale do Nilo.

Durante muitos séculos, com o desenvolvimento da civilização hindu e chinesa na Ásia, e a do Mediterrâneo, que construiria o que chamamos Ocidente, a África Negra ficou isolada. Os europeus a redescobriram durante as grandes navegações, mas dela se aproveitaram na crueldade da exploração colonialista e no comércio de escravos.

Em Roma, no último fim de semana, os 247 bispos e 14 cardeais católicos da África falaram ao Papa em uma linguagem nova. Durante as três semanas de deliberações, no Sínodo que os reuniu, os prelados negros assumiram o discurso antiglobalizador e atacaram claramente a política financeira mundial. O documento final aponta as conseqüências dessa situação, ou seja, as guerras e os conflitos, crises e caos. E critica, com vigor, “as decisões e atos de pessoas que não têm qualquer consideração pelo bem comum na cumplicidade trágica entre os responsáveis locais e os interesses estrangeiros”.

O arcebispo Onaiyekan, de Abuja, na Nigéria, foi firme e conciso: “Não posso imaginar que a British Petroleum, a Shell ou a Mobil façam, no Mar do Norte ou no Texas, o que fazem no delta do rio Níger”. Os prelados acusaram também a Organização Mundial do Comércio, que sufoca a agricultura e a indústria locais, impedindo a auto-subsistência. Os participantes defenderam a versão africana da Teologia da Libertação, elaborada por dois teólogos do Camerum, o jesuíta Engelbert Mweng e seu discípulo Jean Marc Ela.


A esperança da Igreja se encontra nos países africanos e asiáticos, onde o catolicismo cresce, enquanto míngua na Europa e nos Estados Unidos, enquanto as seitas pentecostais crescem na América Latina. De acordo com o Vaticano, nos últimos dez anos, o catolicismo africano cresceu sete vezes mais. Inverte-se o fluxo histórico de sacerdotes. Hoje, na Itália, sede do Vaticano, 30% das paróquias contam com sacerdotes extracomunitários, na maioria procedentes dos países ao sul do Saara. A Igreja está enviando também ao Brasil sacerdotes asiáticos e africanos. Dentro de dez anos, segundo se calcula, um quarto dos habitantes da África será de batizados, enquanto na Europa não passam de 20% os que receberam o sacramento.

Há novo avanço estrangeiro sobre a África, sobretudo dos chineses. Mas se desenha, no tempo, nova aliança atlântica, bem distinta da que se formou ao norte, para a defesa do capitalismo ocidental, com a Otan. Essa aliança do Atlântico Sul, reunindo a África e a América Latina, se institucionaliza, em primeiro lugar, com a ação diplomática do governo brasileiro. O Atlântico sempre foi, mesmo nos tempos coloniais, o nosso mar comum, quando Luanda era o espelho de Salvador. Nosso entendimento com os africanos é favorecido por uma história compartilhada, a partir da fatalidade do colonialismo. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, iniciativa de José Aparecido de Oliveira, é hoje o instrumento para a intensificação de nossas relações econômicas e culturais com o continente, a partir de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Essa é a grande oportunidade para uma associação que pode afastar preconceitos antigos e contribuir para nova idade histórica.

O catolicismo romano se fez no sincretismo da teologia pagã com a mensagem do Evangelho. Nós temos, no Brasil, o rico amálgama do animismo africano com o catolicismo, ainda que a hierarquia se esforce em desconhecê-lo, quando não em condená-lo. Ver Deus em todas as suas criaturas – e, por que não, em todas as manifestações da transcendência – é um bom caminho para a paz. Os fariseus tinham uma pergunta para desdenhar a pregação de Cristo: “pode alguma coisa boa vir de Nazaré?”

É provável que alguém pense a mesma coisa da corajosa palavra dos bispos negros em Roma, embora o racismo seja o mais anticristão dos sentimentos.

A sobrevivência da Igreja Católica depende da Teologia da Libertação, na África e na América Latina, única forma de devolver os pobres a Cristo, e Cristo aos pobres.

DA INFELICIDADE DOS REIS

Sexta-feira fez 216 anos que Maria Antonieta foi decapitada em Paris. Destinada, pelas razões de Estado, a casar-se com Luis 16, aos 14 anos, o casamento levou sete anos para consumar-se: como costumava ocorrer entre os varões das famílias dinásticas, em conseqüência da freqüente consagüinidade, defeito congênito impedia o intercurso conjugal. Entre outros casos de impotência anatômica entre os soberanos, é famoso o caso de Enrique 4º., da Espanha (Enrique, el impotente), cuja filha oficial, Juana, foi desalojada da herança do trono de Castela, quando de sua morte, pela tia, Isabel, a Católica. Era notório que o pai verdadeiro da infanta era Beltrán, um favorito de Enrique 4º, por isso era chamada de Juana, la beltraneja. Tendo em vista essa situação, a convolação das núpcias de Isabel, com Fernando, de Aragão – sobre o qual não havia suspeita de impotência - foi testemunhada por um grupo de nobres, que vistoriaram, nos lençóis, o sangue confirmador.
Segundo uma versão oficial, Luis 16 corrigiu cirurgicamente o defeito. Maria Antonieta, mesmo adolescente, conforme testemunhas da época, não perdeu tempo no intervalo e se cercou de um grupo de cortesãos, atentos e funcionais.
De caráter mais forte do que Luis, que, mesmo depois de coroado, em 1774, se dedicava à caça, às leituras e às artes, a jovem rainha era ambiciosa, perdulária, entregue ao luxo – e à luxúria. Sob sua influência, o rei desalojou do poder os ministros argutos que lhe aconselhavam reformas, a fim de resolver os graves problemas econômicos e reduzir a desapiedada exploração do povo pela nobreza. Durante o processo revolucionário, em que ainda havia a possibilidade de permanência do trono, se as reformas fossem empreendidas, ela se dedicou à intriga e ao comando da vontade frágil do marido. Buscou, mediante a solércia, influir sobre a Assembléia Nacional, cooptou Mirabeau, usou Barnave e outros representantes da direita, mas sua arrogância e seus ostensivos casos de adultério a fizeram odiada pelo povo.
Durante o processo contra o rei, seus advogados, Malesherbes, de Sèze e Tronchet, cuidaram de preservar a rainha, quando tinham argumentos que, ao acusá-la, serviriam para a defesa do soberano. Na manhã de 21 de janeiro de 1792, Luis foi levado à guilhotina. Segundo o duque de Orleãs, ele fora “vítima da igualdade”. Maria Antonieta esteve presa e isolada de todos, até 16 de outubro do ano seguinte, quando também foi levada à lâmina da máquina do Doutor Guillotin. Durante os vinte e dois meses, a jovem, filha de Francisco I e Maria Tereza da Áustria, deve ter meditado sua fatalidade. Nascida princesa, nada pôde saber da vida. Aos 14 anos, foi enviada à França para casar-se com um menino de 15. Durante os primeiros sete anos, conforme carta que enviou à mãe, o casamento não se consumou. Balofo, pálido, tímido, o marido em nada a seduzia. Viveu 19 anos como rainha, combatida pelos homens sensatos da Corte, mimada pelos bajuladores frívolos e abominada pelo povo.

DA DESIGUALDADE ENTRE OS ANIMAIS

Eric Arthur Blay - um dos revolucionários dos anos 30 que se desiludiram com o regime stalinista - foi, sob o pseudônimo de George Orwell, sério combatente contra o totalitarismo. Sua fábula Animal Farm popularizou a frase sempre repetida, para definir a impunidade dos governantes: todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros. A moral é óbvia: todos os homens são iguais, mas alguns deles são mais iguais do que os outros. Sílvio Berlusconi, pelo fato de ser primeiro ministro da Itália, foi considerado, por seus advogados, primus supra pares, e, não, inter pares, ontem, quando se reuniu a Corte Constitucional, em Roma, a fim de examinar a constitucionalidade da Lei que o desiguala. Tal como em outros países, que conhecemos, há a intenção de blindar os ocupantes de altos cargos públicos contra as leis penais. É a reminiscência da irresponsabilidade dos reis, característica das monarquias. Os reis se consideravam acima das leis que, além disso, beneficiavam a nobreza e o clero no confronto com os pobres. Rex est lex, disse James I ao Parlamento, abrindo a cisão que, depois de sua morte, levaria o filho, Charles I, ao encontro do carrasco. A República consagra o enunciado contrário, o de que Lex est Rex: a lei é soberana. É – ou devia ser – como estamos vendo na Itália e alhures.
A Corte Constitucional decidirá hoje - se é que decidirá, tantos são os interesses que escoram o clownismo do magnata e político milanês – se na Itália Lex est Rex, ou não. A decisão é do interesse direto dos italianos, que se dividem entre os que preferem pagar o preço do conformismo, e os que não suportam mais o debochado Berlusconi na chefia do governo. A eles, no alto tribunal, ou fora dele, caberá decidir, de acordo com sua soberania, o destino do premier e o destino da República. O mais importante é pensar no princípio fundamental do direito, que torna todos os homens iguais diante da lei, e a tentativa de recuperação, pelos governantes republicanos, do privilégio dos reis absolutistas. No Brasil, tivemos, com a constituição imperial, a presença do poder moderador e a impunidade absoluta do soberano. O artigo 99 é claro: A Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Ele não está sujeito a responsabilidade alguma. Não obstante isso, os Ministros de Estado (artigo 133) estavam sujeitos à responsabilidade pelos crimes de traição, peita, suborno e concussão; pelos atos contra a liberdade, a segurança e a propriedade dos cidadãos e pela dissipação dos bens públicos. O artigo 135 era duro: Não salva aos ministros da responsabilidade a ordem do Imperador vocal, ou por escrito. Em suma, os ministros tinham que obedecer ao monarca; no caso em que, ao obedecer-lhe, cometessem um ilícito, não podiam recorrer ao dever da obediência. A inviolabilidade dos reis, como sabemos, era imposta pelas leis e pela tradição. Isso não os livrava dos complôs palacianos para matá-los, nem da justiça do povo, que se exercia, como se exerceu, nas duas grandes revoluções da Idade Moderna, na Inglaterra de 1640 a 1649, e na França de 1789 a 1799. Em ambas, de nada valeu a inviolabilidade de seus reis, que nelas perderam a cabeça.
Enquanto Berlusconi tem se esquivado da justiça e de articulação parlamentar que o destitua, recrudesce a reabilitação do fascismo na Itália, com o perigo de que venha a tomar conta da Europa, onde não faltam grupos ativos da extrema-direita. Recente documentário do cineasta italiano Cláudio Lazzaro – Nazirock – mostra como já não se trata de ameaça, mas de realidade. Entre 2005 e 2008, houve 262 ataques violentos contra centros sociais, imigrantes e grupos de gays e lésbicas. A violência – que também se registra nos antigos paises socialistas – é particularmente odiosa contra os ciganos, negros, latino-americanos. Mais grave ainda – porque demonstra a grande adesão popular aos fascistas – foi a eleição de Gianni Alemanno, conhecido arruaceiro contra as esquerdas, para sindaco (prefeito) de Roma.
A tragédia da Itália tem sido a ausência de forças políticas de centro-esquerda, com tal peso que possam conter a nostalgia do fascismo de Mussolini, que se nutre dos velhos fantasmas do medo contra o diferente. Em suma, do racismo. A decisão da Corte de Roma está sendo aguardada com ansiedade pela consciência humanística da Europa.