sexta-feira, 22 de julho de 2011

O TITANIC E O MAR DE ICEBERGS

O ministro das Finanças da Itália, Giulio Tremonti, advertiu ontem que “a Europa pode afundar, como o Titanic”. Desde a crise norte-americana que os observadores anunciam o desastre. Entre as várias causas está a ilusão de que é possível unificar a Europa, a partir da economia. Enquanto todos os países se encontravam mais ou menos na mesma situação, foi possível estabelecer a Comunidade do Carvão e do Aço e, pouco a pouco, criar os mecanismos de integração.

O Tratado de Roma foi assinado por países que se encontravam mais ou menos na mesma situação: Alemanha, França, Itália, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo. Ao ampliar-se a comunidade, com a adesão de países periféricos, começaram a surgir os problemas de convivência. Os que chegavam, chegavam com mais necessidades. Os estadistas europeus atuaram com grande sensibilidade, acossados pela memória das guerras continentais, principalmente a de 1914 a 1918 e a de 1939 a 1945.

A criação do euro, em 1998 (entrando em circulação em 1º de janeiro do ano seguinte) culminou o processo de integração, mas ficaram, e astutamente, fora da moeda única a Inglaterra e outros países. Ora, tratava-se de uma sociedade em que havia ricos e havia pobres. Não era possível que, em um passe de mágica, países de economia relativamente débil — como Espanha e Portugal, que ao integrar-se ainda não se haviam recuperado das ditaduras de direita — pudessem andar no mesmo passo.

Os países ricos os favoreceram com financiamentos, alguns, como para certas obras de infraestrutura, a fundo perdido. Mas todas essas medidas não eliminavam as dificuldades da adoção de uma moeda única em economias tão desiguais. Embora a União Europeia pudesse aconselhar determinadas providências de ordem tributária e de política social, a autonomia política impedia, e é bom que assim seja, uma ação comum ditada pelos mais fortes.

A situação vinha sendo administrada, bem ou mal, até que a queda do Muro de Berlim estimulou os centros mundiais do poder financeiro a deixarem os seus cuidados retóricos e decretarem, com insolência, a prevalência do mercado contra o estado. Com a cumplicidade dos governantes (e, no capítulo, estivemos muito mal), caíram as fronteiras alfandegárias, desnacionalizou-se a indústria dos países periféricos e se privatizaram as empresas públicas.

Os centros de decisão se transferiram dos gabinetes presidenciais e dos parlamentos para os encontros, discretos uns e ostensivos outros, dos grandes financistas que controlam o dinheiro do mundo. Ocorre que ética e lógica caminham juntas, como filhas da razão. Quando uma se ausenta, a outra desaparece. A voracidade do capital, ao violar a ética, perde a lógica. Foi assim que o mercado dos derivativos se tornou o buraco negro das finanças mundiais: criou-se um capital fictício, que alimentou os grandes especuladores e levou milhões à miséria.

Os governos, sem embargo da clareza do problema, em lugar de deixarem que os banqueiros paguem pelos excessos de suas ambições, tratam de salvá-los, em nome da estabilidade. Como alguém tem que pagar a conta, pagam os de sempre, isto é, os pobres e os não ricos. Pagam com a redução dos serviços sociais, de saúde, educação e segurança, e pagam com o desemprego.

A alguns ministros italianos de Berlusconi faltam credenciais da honra, mas a metáfora do Titanic é válida. Ocorre que a Europa não tem pela frente um só iceberg. Ela navega em mar pejado dessas montanhas de gelo. Os Estados Unidos estão encalhados no saguão do Capitólio, à espera que o nível de endividamento se eleve, para sua salvação; a China começa a desconfiar de que seu extraordinário crescimento lhe trará pesadas dificuldades no convívio internacional: seus fabulosos créditos no mundo podem esfarinhar-se na catástrofe que se espera. Todos os países passam pela mesma inquietude. A saída é fácil, se houver a decisão política de tirar a moeda das mãos dos banqueiros e, com isso, expulsá-los do poder ilegítimo que exercem no mundo.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

A ITÁLIA DISSE NÃO A BERLUSCONI

A derrota de Berlusconi, na consulta plebiscitária, apesar da crescente impopularidade do primeiro ministro, trouxe duas surpresas. A primeira delas foi o comparecimento que, superando o patamar constitucional de 50%, validou a consulta, e a segunda, a derrota das decisões do governo pela inédita maioria de 95% em média, nas quatro questões propostas. Como se sabe, há 16 anos não se obtinha o quorum mínimo para anular uma lei ou decisão governamental.

Ainda que, do ponto de vista da atualidade política, a massacrante vitória da oposição seja a da não imunidade (melhor, não impunidade) de Berlusconi e de seus ministros, os outros pontos da consulta golpeiam fundo os postulados do neoliberalismo, sobre os quais Berlusconi estabeleceu o seu poder. O povo disse não à acelerada privatização da água, fechando o passo à ampliada exploração dos recursos hídricos pelas sociedades capitalistas, algumas delas provavelmente estrangeiras, da mesma forma que se manifestou contra a energia nuclear.

Embora tenha perdido, por duas vezes, a chefia do governo para a esquerda, é inegável que a vida política italiana se desenvolveu, desde 1964, quando o poderoso e suspeitíssimo empresário ganhou sua primeira eleição, em torno de Berlusconi. Não se discutiam os projetos de governo, nem os fundamentos ideológicos da esquerda. A vida política oscilava entre os berlusconianos e a esquerda. E Berlusconi administrava os interesses mafiosos do sul com os altos interesses empresariais do Norte, reunidos em torno da Lega Lombarda, de inspiração separatista e neofascista.

O populismo é uma velha doença italiana, e tem suas raízes na velha república romana. Tratou-se de astucioso expediente dos patrícios, o de permitir o surgimento de movimentos dessa natureza, a fim de servir de alívio ao inconformismo das massas – até certo ponto. Houve, no entanto, tanto à esquerda, quanto à direita, movimentos de alguma densidade, vencidos fosse pelas armas, fosse pela reação do próprio povo. O fascismo de Mussolini foi um desses movimentos, mais sério pelas condições históricas que favoreciam a ascensão da direita, e também pela formação intelectual e ideológica do duce, filho de um trabalhador socialista e de algumas letras, que lhe deu o nome de Benito em homenagem a Juarez, o revolucionário mexicano. Juarez morrera onze anos antes do nascimento do líder italiano. É imensa a distância entre Mussolini e Berlusconi, o que dá razão a Marx: as coisas ocorrem primeiro como tragédia e, mais tarde, como farsa. Ainda que para Croce, Mussolini não passou de um “palhaço”, a quem o rei entregara o poder, o duce era discreto em seu comportamento pessoal e protegido pelo sistema totalitário, que preservava a sua privacidade.

A derrota de Berlusconi é uma oportunidade para que os democratas de esquerda encontrem um projeto comum de poder. Eles devem partir da dura realidade de que não foi o comportamento debochado de Berlusconi que promoveu a sua queda de popularidade e, provavelmente, o expila do governo daqui a uma semana. O seu desprestígio é resultante da terrível situação econômica do país, que, por sua vez, se deve ao neoliberalismo que está em dramática decadência em todos os países que o inventaram e nos quais os governos o sustentaram, dos Estados Unidos à Grécia, passando pela França de Sarkozy, a Espanha de Aznar e Zapatero, a Itália do trêfego Berlusconi. A Itália e os seus vizinhos só terão estabilidade política se avançarem nas reformas, algumas delas sinalizadas pelo referendum recentíssimo. A esmagadora maioria dos italianos optou por mais estado e menos mercado, por mais empregos e menos lucros das empresas privadas. Mas a esquerda, em nosso tempo, tem atuado como se o seu caminho ao poder tenha que passar necessariamente pela direita.

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O PERU NA ENCRUZILHADA

O Peru é o mais enigmático dos nossos vizinhos. Alguns de seus intelectuais, dos mais vigorosos da América Latina, foram dos primeiros a “pensar” as contradições de nossos povos. José Carlos Mariátegui se distinguiu como o mais importante marxista do continente, ao examinar as contradições de seu país, com seus Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana. Romancistas como Ciro Alegria, de “El Mundo es ancho y ajeno”, José Maria Arguedas, autor do vasto painel de “Los Rios Profundos” e, mais recentemente, Vargas Llosa, com “Conversación en La Catedral”, não são menos importantes. Eles mostram a humanidade sofrida - rica em história, marcada pela dupla identidade, indígena e européia, além da ponderável presença negra e asiática - da inquieta nação amazônica e andina.

O Peru foi o primeiro país a ensaiar, com Victor Haya de La Torre, o sonho do socialismo. Seu partido – Aliança Popular Revolucionária Americana – fundado no México, em 1924,propunha ação internacional em toda a Indoamérica, ou seja, em todas as nações do continente, do México ao Chile, que ainda mantinham forte presença das populações autóctones da cordilheira. Haya de La Torre preferia ação mais moderada, enquanto seu companheiro de mocidade, o imenso autodidata Mariátegui, criava o Partido Comunista Peruano.

Nenhuma obra de ficção – com forte presença antropológica – foi mais poderosa na análise das contradições andinas do que a de José Maria Arguedas. Privilegiado por haver vivido na cordilheira e, durante algum tempo da infância, apenas com índios e mestiços, ele expõe, como nenhum outro autor latino-americano, o contraditório mundo dos altiplanos e encostas das grandes montanhas, com o conflito permanente entre a visão ameríndia da vida e aquela imposta pela cultura européia. Arguedas acrescenta à sua obra maior, Los Rios Profundos, novelas menores, mas nem por isso menos poderosas, sobretudo na denúncia do imperialismo norte-americano e do latifúndio, como Todas las sangres, e El zorro de arriba y el zorro de abajo, além de artigos jornalísticos e estudos de etnologia.

É este povo peruano que vai domingo às urnas. De um lado, o candidato de centro-esquerda, Ollanta Humala e, do outro, a filha do sanguinário, corrupto e entreguista Alberto Fujimori, que se encontra preso, condenado pela justiça de seu país. As últimas notícias diziam da inquietação do “mercado” (sempre os mesmos) com a possível vitória de Humala. Para os banqueiros e seus sequazes, o destino do país não importa. Não importa a democracia, com o estado de direito e a liberdade das pessoas, mas, sim, os lucros do capital financeiro.

Há uma semana, a vitória da filha de El Chino eram favas contadas. Diante do perigo de que Fujimori (como fazem os grandes narcotraficantes com seus negócios), viesse a governar o país a partir da prisão, e da possibilidade de que a filha conseguisse indultá-lo – houve uma súbita mobilização nacional. Pessoas sensatas, ainda que não de esquerda, como é o caso de Vargas Llosa, manifestaram-se a fim de evitar a tragédia política. Nas últimas horas, cresceu a esperança de que Humala vença o pleito.

O que é mais estranho na atualidade peruana é a atitude do atual presidente, Alan Garcia. Garcia herdou de Haya de La Torre o Partido Aprista Peruano, vindo da APRA, fundada por Haya de La Torre e que fora uma bandeira da unidade latino-americana sob um projeto de socialismo libertário.

A conversão de Garcia à direita, fenômeno muito comum entre os que se elegem pela esquerda e logo se entregam aos antigos adversários, faz, no caso do Peru, lembrar verso poderoso do maior poeta do país, o comunista César Vallejo, em poema escrito em 1937:

Acaba de pasar,

sin haber venido.

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http://www.conversaafiada.com.br/politica/2011/06/03/santayana-analisa-a-eleicao-do-peru/

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sábado, 7 de maio de 2011

A SEMENTE DO MEDO

Os Estados Unidos celebram a morte de Bin Laden, e um ex-embaixador brasileiro considerou-a “espetacular”.

É melhor ver a morte de qualquer homem, bom ou mau, como a morte de parte de nós mesmos. Como no belo poema em prosa de Donne, any man’s death diminishes me, because I am involved in mankind, and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee. A morte de qualquer homem me diminui, disse o poeta, porque sou parte da Humanidade, e, por isso, não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por você. Todos nós morremos um pouco, quando as Torres Gêmeas vieram abaixo, e todos nós morremos quase diariamente com os que tombam e tombaram, na Palestina, no Iraque, no Afeganistão, na Costa do Marfim, no Realengo, em Eldorado dos Carajás, na Candelária e nas favelas brasileiras.


Os americanos comemoram nas ruas a morte de bin Laden, enquanto nos países muçulmanos outros oram pelo homem que consideram mártir. Como parte da Humanidade, talvez não nos conviesse a euforia pela execução sumária de bin Laden, nem a consternação por sua morte. Os atentados de Nova Iorque – de resto, nunca assumidos de forma cabal pelo saudita – foram crime brutal contra a Humanidade, bem como todos os atos de terrorismo, ao longo das duas últimas décadas. Mas a vingança exercida pelos comandos norte-americanos não pode ser aplaudida. Foi um ato de guerra, cometido contra a soberania do Paquistão, desde que ao governo de Islamabad não foi solicitada autorização prévia para a operação – segundo informou o diretor da CIA, Leon Panetta.

Isso nos leva a outra leitura de John Donne: não pergunte que povo foi atingido pela intervenção militar norte-americana. Todos nós fomos atingidos, não só por essa operação bélica e pela agressão à Líbia, mas também, no passado, pela intromissão, política, militar, econômica, das elites que controlam o governo de Washington, desde a guerra de anexação de territórios soberanos do México, movida pelo presidente Polk, em 1846. O México perdeu a metade de seu território, e os Estados Unidos ganharam mais de um quarto do que já ocupavam no norte do hemisfério. Essa vitória excitou a voracidade imperialista dos Estados Unidos, mais tarde explícita no fundamentalismo do “Destino Manifesto”.

Devemos ser cautelosos quando procuramos entender o momento atual. Comentaristas internacionais, sob o calor destas horas, tentam pensar nas conseqüências imediatas, e há os que discutem se o homem morto em Abbottab (o nome da cidade é homenagem ao general James Abbott, que serviu nas forças de ocupação da Índia no século 19) é mesmo bin Laden – que começou a sua vida de combatente como aliado dos norte-americanos contra os soviéticos, no Afeganistão dos anos 80. Tenha sido ele, ou não, importa pouco. Osama era apenas um símbolo, na clandestinidade imposta pelas circunstâncias. O que importa, e muito, é o que virá a ocorrer não nos próximos dias, que serão de pausa e perplexidade, mas nos próximos meses e anos.

O perigo maior, e desdenhado, é o de que o conflito atual, iniciado com a ocupação da Palestina por Israel, se transforme realmente em guerra declarada entre os países capitalistas ocidentais, que se identificam como cristãos, e os muçulmanos. Quem definiu a agressão como cruzada foi Bush, ao afirmar que Deus o havia convocado a matar Saddam. E conforme o livro clássico de Essad Bey, todos os movimentos no Oriente Médio, entre eles a ocupação judaica da Palestina, se fazem na busca da posse de seu petróleo. No passado, o saqueio se fazia em nome da “civilização” e, hoje, se faz também em nome da “modernidade”.

No fundo do regozijo, há sementes de medo. Esse medo é muito mais poderoso do que foi o saudita, de 54 anos e, segundo informações não desmentidas, a um tempo amigo e sócio dos Bush nos negócios de petróleo.

OS PILARES DA MENTIRA

Em suas memórias, Known and Unknown, A Memoir, recém publicadas (Nova York, 2011), Donald Rumsfeld conta, nas páginas 208-209, o momento patético da Queda de Saigon. Ele era chefe de gabinete de Gerald Ford, que assumira o governo depois da renúncia de Nixon e devia administrar a humilhante derrota.

Segundo Rumsfeld, Kissinger assegurava, no Salão Oval, que a evacuação de Saigon já se completara, com a saída do Embaixador Graham Martin que - tal como os comandantes dos navios que naufragam - devia ser o último a escapar, quando se soube que não era verdade. O diplomata escapara antes que personalidades do governo títere e derrotado de Saigon invadissem a embaixada e esbaforidas, tentassem ocupar os últimos helicópteros, disputando espaço com os norte-americanos em fuga. Antes da reunião, o fotógrafo da Casa Branca, David Kennerly, veterano do Vietnã, saudara Ford com duas frases: “A boa notícia é que a guerra acabou. A má notícia é que a perdemos”.

Segundo o autor, alguém sugeriu que não se devia corrigir a falsa informação de Kissinger, e se ajustasse nova versão ao pronunciamento do Secretário de Estado. Rumsfeld diz ter sido contra, lembrando que tudo o que havia sido dito ao povo norte-americano não fora simplesmente a verdade. Esta guerra tem sido marcada por muitas mentiras e evasivas, e, assim, não há o direito de terminá-la com uma última mentira” – ele teria dito. Ford mandou o secretário de imprensa, Ron Nessen, dizer a verdade aos jornalistas.

No passado, a mentira podia durar muito, embora sempre tivesse pernas curtas. Em nosso tempo, os segredos podem ser guardados, como os da morte de Kennedy, mas a suspeita da mentira é tão danosa quanto a sua revelação. Os Estados Unidos sempre mentiram, a fim de tentar legitimar sua política agressiva. Todos os golpes de Estado, patrocinados pelos norte-americanos em países estrangeiros, ocorreram sob pretextos falsos. Não é necessário ir muito longe: a guerra contra o Afeganistão e o Iraque foi montada sobre os pilares das mentiras mais reles. Saddam Hussein podia ter sido cruel com os inimigos, mas o seu governo era o mais laico e menos obscurantista da região. Depois da guerra contra o Irã, ele abandonara todas as armas químicas. Não dispunha de recursos técnicos para a produção de bombas atômicas. Fotos foram adulteradas, indicando reatores clandestinos, forjaram-se depoimentos, e essas “provas” arranjadas levaram um homem tido como sério, o general Colin Powell, a mentir diante das Nações Unidas.

Poucas horas depois da morte de Bin Laden, começam a se confirmar suspeitas iniciais e perturbadoras. O saudita foi morto desarmado - e poderia ter sido capturado vivo. No avesso da lógica e da ética, Washington diz que não é preciso que o suspeito esteja armado para resistir à prisão. Osama “resistiu”, de mãos nuas, aos soldados protegidos por uniformes à prova de bala e dotados de armas potentes. O saudita tinha que ser morto, antes que pudesse dizer qualquer coisa ao mundo.

O bom senso internacional, passado o entusiasmo frenético diante da execução, começa a prevalecer, para qualificar o ato como agressão criminosa contra o povo do Paquistão e seu governo. Obama declara que agiu em defesa de seu país – e ponto. Foi como dissesse: “tenho o poder e dele faço o que quiser”.

Conta-se que, em Ialta, Churchill propôs que Hitler fosse executado tão logo reconhecido pelas tropas aliadas. Com ironia, Stalin se opôs: na União Soviética se respeitava o direito a um julgamento, conforme “o devido processo da lei”.

Como se sabe, Hitler se antecipou, matou-se com sua pistola, depois de determinar aos auxiliares que queimassem o cadáver – o que fizeram, em uma pira de molambos embebidos de gasolina.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

FICÇÃO E REALIDADE

FICCÇÃO E REALIDADE

Victor Hugo, em Les Miserables, definiu a Revolução como “le retour du fictif au réel”. O escritor não examinou, então, as relações mais fundas entre a ficção e a realidade. A frase se insinuava diante das tarefas políticas, na esteira das revoluções, que eclodiam no correr do século 19, a partir da Revolução Francesa de 1789. Ficção e realidade, na política, como em tudo, são categorias que se mesclam. Os projetos políticos, de alguma forma, são ficções, que se realizam, ou não. Mas Hugo teve razão, se quis definir o real como a situação perfeita, aquela que as circunstâncias aceitam e limitam.

Estamos, em tempo revolucionário, como sempre estivemos na História, em si mesma inevitável processo de mudanças continuadas, em que a política pode ser vista como o provisório que dura. Dura mais, ou menos, de acordo com a situação concreta de espaço, modo e tempo.

No plano internacional, o bom senso indica que o poder dos Estados Unidos, baseado na força militar, é mais fictício do que real. A realidade é a falência do país, com dívida de 15 trilhões de dólares – mais do que o seu PIB do ano passado, de cerca de 14 trilhões. O orçamento para este ano de 2011, prevê gastos militares (despesas correntes mais as pensões dos veteranos) de quase um trilhão de dólares, em um total de 3.6 trilhões. Os Estados Unidos, com todo seu poderio bélico, não ganhou uma só guerra que empreendeu, desde a vitória coletiva contra o nazismo, em maio de 1945. Teve êxito em golpes liberticidas contra governos populares da América Latina. As derrotas no Vietnã e na Somália empalidecem qualquer triunfo – e seu desempenho no Oriente Médio não promete melhor sorte.

A reunião entre o Brasil, a Índia, a Rússia, a China e a África do Sul, ocorrida na Ásia, se aceitamos a tese de Hugo, é um dos movimentos para a vitória da realidade contra a ficção. Esses países, em conjunto, contam com mais da metade da população do mundo. O dinamismo de sua economia surpreende os observadores. Ainda que muito desse crescimento, nos dois gigantes asiáticos (Índia e China) se deva à pesada apropriação da mais-valia dos trabalhadores, submetidos a jornadas maiores de serviço e a salários reduzidos, os resultados obtidos os colocam na vanguarda do desenvolvimento nesta década que se inicia.

O mundo começa a não caber na camisa-de-força do condomínio que se estabeleceu com a vitória de maio de 1945 contra a Alemanha e o Japão. Esse condomínio pôde ser mantido mediante o poderio bélico e econômico dos Estados Unidos, o único país a ganhar tudo com o conflito, uma vez que a geografia o preservara de combates em seu próprio território.

É desse desconforto planetário que novos países emergem, a fim de dizer o que pensam e o que querem no cenário internacional. Eles dispõem de inegáveis trunfos, como os da extensão territorial, da população, dos recursos naturais, como minerais metálicos, disponibilidade de energia fóssil e renovável, mananciais de água, biodiversidade e acelerado desenvolvimento da ciência e da tecnologia – e a consciência da necessária soberania.

Estamos em plena revolução política e econômica, que promete reviravolta histórica, mas, como todas as grandes mudanças, carregada de perigos. Ela nos propõe desafios imensos, como os de universalizar a educação, dar novos paradigmas ao desenvolvimento da ciência, domar o progresso, de forma a não comprometer os recursos da natureza, e, ao mesmo tempo, distribuir e manter o bem-estar que a tecnologia nos trouxe. O entendimento entre os países emergentes será sempre provisório, como são os atos políticos, mas deve durar o bastante para redesenhar a geografia do poder no mundo.

AS IMAGENS DE ABDIJÃ

As fotografias, divulgadas pela imprensa internacional, são assustadoras. Sob a proteção das armas e soldados franceses, a horda de partidários do novo presidente da Costa do Marfim, Alassane Quattaro, cometeu atrocidades inenarráveis, no assalto final à residência do chefe de Estado vencido, Laurent Gbagbo.

Aceitemos todas as acusações feitas a Gbagbo e o argumento de seu adversário, que a “comunidade internacional” acolheu, de que as eleições foram corretas. Gbagbo lhes negava legitimidade e se recusava a deixar o poder. Mas se tratava de um assunto interno, que deveria ser resolvido sem interferência estrangeira. A França, no entanto, interveio em Abidjã, como se a Costa do Marfim fosse um mero departamento de seu território soberano. Não interveio para proteger a incolumidade do ex-presidente, como havia prometido, mas, sim, a violência dos assaltantes. A imagem da mulher de Gbagbo, que teve as tranças arrancadas pelos atacantes, a roupa esfarrapada pela brutalidade, os olhos vermelhos, a face humilhada, é outro documento destes tempos que põem à prova a alma dos homens, para lembrar a frase de Thomas Payne, criada durante as duas revoluções, a americana e a francesa, que marcaram os anos finais do século 18. Convém lembrar que, naqueles confrontos brutais, como foram os do “Terror” na França, não houve centros de tortura, como os Guantánamo e Abu Ghraib, nem massacres como os de My Lai, no Vietnã.

A França foi o primeiro país a declarar os direitos inalienáveis do homem e do cidadão. Mas a bela Declaration des droits, de 1789, não passa de referência histórica. A Grande França, que deu ao mundo alguns de seus mais belos momentos, é hoje caricatura do passado. Depois de De Gaulle ela ainda teve horas fortes com Mitterrand. Mas, desaparecida a grande geração dos resistentes ao nazismo, a mediocridade de Sarkozy e o atrevimento da velha direita, racista, que se revelou no famoso processo contra Alfred Dreyfus, na passagem do século 19 ao século 20, retorna.

O que a França tem feito na África, e principalmente agora, em Abidjã, é uma intervenção colonialista declarada, assim como é uma guerra de reconquista colonial a que está ocorrendo na Líbia. Os Estados Unidos, a França e a Inglaterra parecem empenhados em restaurar seus impérios ultramarinos – com os aplausos de uma Espanha apodrecida pela corrupção e embalada pela esperança de obter algumas vantagens marginais nessa nova divisão do mundo.

Ontem, mulheres muçulmanas foram multadas na França, pelo uso de seus trajes tradicionais. O governo de Paris alega que a medida visa a proteger os direitos femininos. É a torção de conceitos, de que o totalitarismo é mestre. No Iraque, as mulheres não eram obrigadas a esconder o corpo sob a burka, nem a face sob o nikab. Não obstante isso, como o problema era o petróleo, Saddam foi enforcado. Simone Gbagbo, de fé cristã, foi humilhada e agredida, sob os olhos, provavelmente divertidos, dos soldados franceses que garantiram o assalto à residência oficial. Sua roupa foi arrancada do corpo e rasgada. Seu marido, Laurent Gbagbo, que se acovardou nos últimos momentos, parecia um sonâmbulo. Nem mesmo o quarto em que as tropas francesas e as de Quattaro meteram o ex-presidente e sua mulher, foi resguardado. As fotos dos dois, sentados sobre o leito, sob o escarmento dos vencedores, correram ontem o mundo.

É um retrato da “grandeur” da França, sob Sarkozy. Em 1968, De Gaulle qualificou a rebelião estudantil de Paris como uma chienlit. Como ele definiria a triste palhaçada de Sarkozy em Abidjã?

O PARTO DE UMA NOVA IDADE

Quem se dedica ao estudo da História está dispensado das surpresas e do espanto. Os tempos também envelhecem, de suas entranhas surgem novas idades. E o parto dos tempos novos costuma ser terrível, com guerras, atos de loucura, fogo e sangue. A Idade Moderna, que se iniciou com o Renascimento e a descoberta da América, começou a envelhecer quando o Iluminismo não conseguiu consolidar as conquistas políticas da Revolução Francesa. Não souberam os líderes do grande movimento libertador conter a violência no momento certo, e o resultado, com a reação da direita, foi o surgimento de Napoleão, a restauração da monarquia e a substituição da nobreza pela burguesia.

A injustiça continuou, e as tentativas revolucionárias dos trabalhadores europeus, em 1848, e dos franceses em particular, com a Comuna de Paris, foram derrotadas pela força. O governo dos trabalhadores que assumiram o poder no município de Paris foi, na visão de Marx, “um frustrado assalto ao céu”. Os operários foram trucidados. Os soldados franceses, vergonhosamente recém-derrotados pelas forças alemãs, na guerra de 1870, descontaram sua frustração e se tornaram “valentes” contra trabalhadores mal armados, que se defendiam em barricadas improvisadas. Os que se rendiam eram logo executados.

Desde 1776, quando os norte-americanos declararam independência e iniciaram a guerra contra a Inglaterra, o mundo ocidental entrou no período de preparação para uma nova idade. Em 1789, com a reunião dos Estados Gerais, as ideias políticas do Iluminismo eclodiram em Paris. Elas já haviam influenciado os norte-americanos e chegado ao Brasil, a Ouro Preto. Em março daquele ano, os revolucionários mineiros foram denunciados; em abril de 1792, Tiradentes foi enforcado e esquartejado. Em janeiro de 1793, Luís XVI foi guilhotinado em Paris.

A onda revolucionária árabe é vista por observadores ocidentais, jornalistas e diplomatas como uma vitória do capitalismo. Isso é até possível, mas é só uma pequena parcela da realidade

O processo continuou no século 19, com o enfrentamento entre os ricos burgueses e os trabalhadores pobres e explorados. No século 20, os confrontos se multiplicaram. Durante os 100 anos, duas guerras mundiais e vários conflitos menores, o sangue jorrou como nunca, mais de 100 milhões de pessoas, entre combatentes e não combatentes, morreram. Agora há sinais de que a Humanidade já se encontra cansada de tudo isso.

A onda revolucionária que percorre os países árabes vem sendo identificada pelos observadores ocidentais como uma vitória do capitalismo. Na visão apressada dos jornalistas e diplomatas ocidentais, os jovens mobilizados­ pela internet querem derrubar seus déspotas a fim de viver os padrões europeus e norte-americanos de conforto­. É até possível que isso seja verdade em parte, como é evidente que os países capitalistas, sedentos do petróleo do Oriente Médio, incentivam rebeliões, como as do Líbano, com seus agentes provocadores. Mas estão vendo só uma pequena parcela­ da realidade­.

A rebelião, ainda que não exista uma consciência clara disso, se faz contra uma ordem mundial de domínio. Essa ordem, construída e administrada pelo capitalismo, sempre aceitou os tiranos do Oriente Médio, desde que eles lhe facilitassem o acesso ao petróleo. Não são os direitos humanos, como a sua hipocrisia­ proclama, que defendem, mas o direito que se arrogam de explorar­ os povos.

A Revolução Soviética foi uma grande tentativa de construir esse novo tempo, mas foi vencida pela traição interna de seus burocratas e pelos seus graves erros, entre eles a violência stalinista. A queda do Muro de Berlim, porém, não significa a derrota definitiva do humanismo, como eles pensam.

Está surgindo uma nova idade no mundo: o sistema de poder, dominado pelos banqueiros, que faz e desfaz governos, controla a ciência e a tecnologia, determina a vida e a morte de povos inteiros, começa a ser visto em seu horror pelas grandes massas. O que virá depois, não sabemos – mas as dores do parto desse novo tempo já se fazem sentir.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

A LÓGICA E O ATOLEIRO

A eclosão da inteligência na Grécia do século V parece ter consumido quase toda a possibilidade de raciocinar da espécie humana. Sendo assim, sempre nos valemos da experiência intelectual daquele tempo, que os árabes guardaram e devolveram à Europa. Não é difícil encontrar períodos de eclipse da lógica e da ética no curso da História. Em nossos dias, personalidades políticas, maiores ou menores, dizem coisas que só podemos atribuir à carência intelectual ou a debochado insulto à ética, quando não à convergência das duas situações. A propósito da Líbia, repete-se a velha tática dos dominadores de perverter as palavras, de torcer a semântica, para fazer do certo, errado; e do errado, certo.

O governo de Kadafi fez o que todo governo - de direita ou de esquerda, ditatorial ou democrático - ameaçado faz: reagiu com as forças de que dispunha. A reação era na medida da sublevação: no início, de natureza apenas policial. Com a escalada da rebelião armada, aparentemente justa, contra o governo unipessoal e arbitrário de Kadafi, a violência da repressão também cresceu. Os americanos, franceses e ingleses decidiram pedir ao Conselho de Segurança autorização para arrasar Kadafi. O Conselho, com a abstenção dos Bric e da Alemanha, autorizou medidas limitadas à zona de exclusão aérea. Os bombardeios, segundo denúncias respeitáveis, têm sido indiscriminados, tal como ocorreu no Iraque, durante muitos anos, e têm matado mulheres, crianças e idosos indefesos.

Intelectuais destacados, mas também simples pessoas do povo, mostram indignação contra essa agressão à lógica da linguagem. A fim de evitar que os civis sejam metralhados, bombardeiam-se as cidades; contra as metralhadoras de Kadafi, disparam-se os mísseis Tomahawk, ao custo de 600.000 dólares cada um. Ao massacre se dá o nome de “proteção”. Essa distorção do sentido dos vocábulos é apontada por observadores no mundo inteiro.

Le Monde publicou ontem um “pequeno dicionário”, para entender essa linguagem dissimuladora, produzido pelo site Acrimed. Não se fala em “guerra”, mas em “resposta”, como se a Líbia houvesse agredido algum dos “aliados” e as operações tivessem caráter defensivo, e não ofensivo; usa-se o termo francês “frapper”, para os ataques, quando frapper significa mais tocar, do que golpear (“frapper” uma bola em jogo de futebol, “frapper” à porta); outro termo usado é o de “frappes non ciblées”, para dissimular os bombardeios ao azar, ou seja, sem alvos definidos, ou seja, para disseminar o terror. Outra distorção é a de chamar “kadafistas” às tropas do governo de Trípoli, em lugar de designá-las como simplesmente tropas leais, em contraponto às tropas rebeladas. O secretário geral da OTAN, Andrés Rasmussen, disse que a resolução da ONU prevê o embargo de armas, e que o dever da Aliança é proteger os civis, não de armá-los, como querem Obama, Hillary Clinton, Sarkozy e Cameron.

O presidente dos Estados Unidos começa a enfrentar a oposição do Congresso, pelo açodamento com que determinou a ação militar contra a Líbia, sem autorização parlamentar. Mesmo que a operação houvesse sido consentida pelo Conselho de Segurança da ONU, o emprego de armas e tropas necessitava da ratificação prévia do Congresso. Obama violou a Constituição (art.8, n. 11) e, em tese, se tornou passível de um processo de impeachment.

A derrota de Sarkozy na França é um claro recado do inconformismo dos franceses. Na Inglaterra, com as manifestações de protesto, os cidadãos não admitem que haja cortes nos gastos sociais, enquanto se financiam operações de guerra. O Marrocos, que está para a França como Israel para os Estados Unidos, apóia os bombardeios. Os saarauis são os seus palestinos.

Sem a ajuda da ética, essa companheira inseparável da lógica, Obama e seus aliados começam a patinar no atoleiro.

OS OUVIDOS DA FORMIGA

Há anos tento recuperar o texto de um dos mais assustadores contos de ciência ficção, que li ainda na adolescência. Ao que me indica a frágil lembrança da narração, o autor era russo. Em certo dia, os astrônomos localizam uma nuvem de gás letal que se aproxima da Terra e que a cobrirá, fatalmente. Certos do fim da vida no planeta, os líderes políticos se reúnem às pressas com os cientistas e, no tempo ainda disponível, tomam providências para registrar tudo o que seria possível guardar para uma civilização que viesse a surgir, em qualquer tempo depois, em nosso planeta. Um complexo sistema é estabelecido para chamar a atenção do futuro ser inteligente, quando, passado o efeito do envenenamento atmosférico, fosse presumível a comunicação com esse desconhecido, descendente de alguma forma de vida preservada durante o grande acidente cósmico.

Um dia, os grandes alto-falantes, espalhados pelo mundo, reproduzem o som estridente das sirenes e, em seguida, em todas as línguas imagináveis, as informações sobre os arquivos da vida humana, com as chaves de sua decodificação. Durante meses, enquanto duram as potentes baterias do sistema, os sons se repetem, sem que haja qualquer reação. Segundo o conto, os únicos seres sobreviventes haviam sido as formigas – e as formigas são surdas.

Nos arquivos subterrâneos, e para sempre, enquanto o sol brilhar e a Terra existir, jazerão, tão indiferentes como as rochas, as gravações da Quinta Sinfonia de Beethoven, com sua intrigante pausa inicial; das Quatro Estações de Vivaldi, de toda a obra de Bach e Telleman, das Sinfonias de Mahler e das surpreendentes composições de Gershwin; as mais belas esculturas; todos os livros do mundo, juntamente com as pinturas, da reprodução dos afrescos da Antiguidade a Miró e Picasso. Também guardados em recipientes de cristal selado, os grandes filmes até então produzidos.

Não estamos ouvindo os avisos da Natureza. Eles estão sendo mais insistentes em nosso século, que se inicia, do que nunca foram. Esses avisos podem ser confirmados pela ciência: o pólo magnético se desloca rapidamente, em conseqüência das tempestades magnéticas se sucedem. Há o risco, já anunciado, de que haja tal subversão no campo magnético terrestre que todos os registros eletrônicos se apagarão em um instante – e para sempre.

O homem ainda não se deu conta de sua grandeza. A inteligência que o assiste é a maior expressão da vida no Cosmos. Fruto do acaso, ou de deliberada intenção superior, o Universo, com seus mistérios e sua imensidão só serve ao homem, porque só o homem tem a consciência de que o Universo existe.

Nos últimos 150 anos causamos mais danos à Natureza do que em todo o curso da vida na Terra. E não adianta esquivar-se da verdade, tão clara como o sol das manhãs de verão: toda essa violência se fez em nome do lucro, em nome do acelerado crescimento do capitalismo, exacerbado a partir de sua aliança com a inteligência tecnológica. Ou paramos para refletir sobre tudo isso, ou, realmente, não merecemos o Universo que recebemos ao nascer e que, mesmo o perdendo, cada um de nós, ao morrer, o legaremos aos que virão de nossa semente e de nossos sonhos. Nós o legaremos com o melhor de nossa essência, na arte, essa sublime cumplicidade com a natureza, no pensamento filosófico, na fé na transcendência, no registro das histórias de amor.

Isso, se conseguirmos encontrar a razão da vida, que perdemos, inebriados pelo mito do progresso sem limites, do hedonismo sem limites, da insânia sem limites. Uma coisa é certa: nosso sistema de vida, conduzido pela razão do capitalismo, é incompatível com a preservação da espécie. Temos que encontrar um novo caminho, em que o homem possa ser feliz e se realizar, enquanto o nosso planeta se mantiver girando, na órbita de uma estrela ainda viva.

A NOVA REPARTIÇÃO COLONIAL DO MUNDO

A Europa e os Estados Unidos, com sua ação contra a Líbia, buscam voltar ao século 19, e promover nova repartição colonial do mundo. Na realidade, não houve independência efetiva das antigas colônias. Mediante os artifícios do comércio internacional, e, sobretudo, da circulação de capitais, a dependência econômica e política dos paises periféricos permanece. Nos últimos vinte anos, com a globalização neoliberal, o domínio dos paises centrais se tornou ainda maior. Razão teve Disraeli, o controvertido homem de estado britânico, ao dizer que as colônias não deixam de ser colônias pelo simples fato de se declararem independentes.

Esse domínio indireto por si só não lhes basta: querem retornar ao estatuto colonial escancarado. Ao perceberem os sinais de insurreição geral dos povos contra a opressão de seus prepostos, tomam a iniciativa da repressão preventiva. A doutrina da preemptive war de Bush continua vigendo, e é agora aplicada pela França e pela Grã Bretanha, sob solerte delegação de Washington. Os norte-americanos bem intencionados, que votaram em Obama, descobrem que não podem mudar o sistema mediante o processo eleitoral. Como o grande presidente republicano – e o mais importante militar do século passado – Eisenhower denunciara e previra, quem domina o sistema é o “complexo industrial-militar”, hoje com o mando repartido entre o Pentágono e Wall Street.

O presidente Obama se assemelha, a cada dia mais, aos Bush. Embora seu objetivo final seja o mesmo, ele cuida de falar macio na América Latina, enquanto açula seus aliados contra a Líbia, no movimento da reconquista imperial do Norte da África. Tal como Tony Blair, no caso do Iraque, Cameron se dispõe ao dirt job. Conforme o semanário alemão Focus, comandos britânicos já operavam na Líbia semanas antes da oficialização da aliança.

O movimento pela re-colonização, por parte das antigas metrópoles, se desenvolve pari-passu com a globalização. E obedece ao discurso hipócrita de que, fora dos padrões católicos e protestantes da civilização ocidental, todos os povos são bárbaros e incapazes de autogoverno. A realidade é bem outra: a fim de manter o nível de conforto e de consumo dos países centrais, é necessário usar todos os recursos naturais e humanos da periferia. O espaço asiático de saqueio, no entanto, se estreita com o aumento da população e de consumo conforme os padrões ocidentais – e o crescimento da China. Mas há ainda o gás e o petróleo do Cáspio, pelos quais os americanos buscam controlar o Afeganistão e ameaçam o Irã. Manter os mananciais petrolíferos do Oriente Médio e do Norte da África é, em sua visão, essencial – apesar de seu discurso hipócrita sobre o meio-ambiente. A mesma hipocrisia se revela na declaração de que não querem atingir Kadafi: seu complexo residencial foi atacado pelos mísseis de Obama, da mesma forma que Reagan o fez, em 1986, matando uma filha do dirigente líbio.

Ao mesmo tempo, é-lhes conveniente assegurar o suprimento de minerais e de alimentos, da América Latina e da África Negra. Ameaçados pela penetração dos chineses no continente africano, eles estão dispostos a jogar tudo, para a restauração de seu antigo domínio. E não faltam os sócios menores, os sub-empreiteiros do colonialismo, como os espanhóis e os italianos. Os espanhóis, nessa nostalgia de Carlos V e Felipe II, se unem a Obama, a Cameron e a Sarkozy. Não há diferença entre Zapatero e Aznar: os dois são o mesmo, no esforço pela Reconquista da América do Sul. Os italianos são menos insistentes: sabem que com a queda de Kadafi, a Líbia não lhes será devolvida.

Os neocolonialistas tentam aproveitar-se de uma rebelião sem idéias, embora justa, contra a corrupção e o poder ditatorial nos países árabes. Mas seu êxito não é certo.

Os norte-americanos sempre criam, estimulam e financiam movimentos oposicionistas em todos os paises nos quais é de seu interesse desestabilizar os governos e os sistemas políticos. Estamos, nestes dias, lembrando-nos de 1964. Poderíamos nos lembrar de todos os anos anteriores, sobretudo do período entre 1945 e 1954 quando Vargas, eleito presidente, criou os instrumentos econômicos necessários ao desenvolvimento independente, com as grandes empresas estatais. Depois de morto o grande presidente, Juscelino conseguiu equilibrar-se, graças à sábia opção política de mobilizar a nação para as tarefas do crescimento acelerado.

Assim, não é de surpreender que seus agentes e aliados, nos países muçulmanos, tenham estimulado o movimento que se iniciou, de maneira aparentemente acidental, na Tunísia. Os jovens dos países islâmicos se encontram insatisfeitos com a vida. Faltam-lhes oportunidades de realização profissional e pessoal. Sua liberdade é limitada, e seus sonhos se desfazem, diante de uma sociedade fechada em si mesma.

No último dia 21, o New York Times publicou artigo de um jovem de 24 anos, e bem sucedido colaborador do respeitável Council of Foreign Relations, de Nova Iorque. Mattew C. Klein analisa a situação dos jovens norte-americanos, mostrando que a sua situação de desemprego é semelhante à dos jovens dos países pobres, e que os seus sonhos são também limitados. Ele poderia ter discutido também o desencanto da parcela não alienada da juventude de seu país com o governo, com a corrupção parlamentar e com o indecente comportamento das grandes corporações que têm a sua cabeça em Wall Street, com o belicismo de seu país. O fato de que haja liberdade de imprensa e eleições periódicas não reduz o absolutismo essencial do sistema norte-americano. O povo vota, de quatro em quatro anos, a imprensa é livre, o sistema judiciário funciona, embora nem sempre a Suprema Corte julgue com isenção. Mas, ainda assim, a liberdade, ali, como em outros lugares, é um bem de mercado. É preciso comprá-la.

Os direitos humanos, ainda que proclamados em declarações altissonantes, são também violados nos Estados Unidos e nos países que lhes fazem coro. Basta lembrar o que se passa em Guantanamo, o que foi documentado em Abu Ghraib, e as condições a que está submetido, em uma prisão naval, o soldado norte-americano Bradley Manning.

O discurso de que a intervenção na Líbia se faz em nome dos direitos humanos e da proteção aos civis é imoral. É considerada insensata até mesmo a parlamentares britânicos, como o deputado Rory Stewart, em artigo publicado no dia 18, pela London Revew of Books. Stewart não é um homem de esquerda. Deputado por um dos tradicionais redutos conservadores do Noroeste da Inglaterra, o de Penrith and the Border, o parlamentar revela conhecimento do tema. Ele participou das tropas britânicas no Iraque, e, depois disso, atravessou a pé o Afeganistão, como parte de uma viagem maior, da Turquia ao Nepal, por 6.000 quilômetros e que durou dois anos. Embora conservador, Stewart considera um erro a participação de seu país nas cruzadas anti-islâmicas. Justifica, em parte, a intervenção na Iugoslávia, em nome da proteção das populações civis, ali ameaçadas de genocídio – mas não concorda com as demais. Reproduzimos alguns textos de seu artigo, publicado com o titulo de “Here we go again”:

Parecia duplamente improvável que a Inglaterra algum dia interviria militarmente em país como a Líbia. Embora pobre em petróleo, o Afeganistão, na Ásia Central, foi visto por muitos muçulmanos como objeto de ocupação por cruzados infiéis, comandados por Israel, e com o objetivo de implantar bases militares ou de arranjar petróleo barato. Qualquer movimento contra a Líbia – país árabe, muçulmano, obcecado numa luta sem tréguas contra o colonialismo e suando petróleo – dava a impressão de que seria visto como movimento extremamente hostil e sinistro, primeiro pelos seus próprios vizinhos árabes; mas também pelo mundo desenvolvido e até pelos próprios líbios.

A Líbia não atende, sequer, aos critérios do direito internacional, como alvo de intervenção militar. Kadáfi é o poder soberano, não os rebeldes; não praticava nem genocídio nem limpeza étnica. Na Bósnia, a situação era diferente: em algumas semanas, haviam morrido 100 mil pessoas. E a própria Bósnia – estado soberano não reconhecido pela ONU – pediu formalmente a intervenção. O caso do Kôssovo foi menos claro, mas a intervenção visou Milósevic e veio depois das guerras dos Bálcãs, iniciadas por ele, e do deslocamento forçado de 200 mil pessoas, com provas abundantes de atrocidades movidas por preconceitos étnicos. Esse tipo de concepção do que seja uma intervenção militar legal, e que em 1999 parecia ser a quintessência da governança e do consenso global, deixou de ser a concepção dominante no Ocidente.

Como deputado à Câmara dos Comuns, ocorreu-me que talvez seja hora de lembrar às pessoas que, apesar da desgraça do Afeganistão, a Inglaterra ainda pode ter papel construtivo no mundo.

No fim de seu artigo, o parlamentar é pessimista e vai fundo na exposição dos pretextos dos colonialistas:

“Nada me tira da cabeça que o perigo maior não é o desespero, mas as decisões irrefreáveis, quase hiperativas: o senso de alguma obrigação moral, o medo de estados-bandidos, de estados fracassados, de perdermos nossa “credibilidade”. Isso, sim, me faz temer que estejamos no início de mais uma década de superintervenção militar”.

Rory Stewart (nascido em Hong Kong, de pais ingleses, educado na Inglaterra) confirma assim o objetivo de outro movimento colonialista, de novo “manu militari” dos velhos dominadores. Acuados pela falta de petróleo barato, eles se agarram ao passado, em busca de sua segurança e de seu orgulho, como donos do mundo.

O CRISTO QUE VIVE ENTRE NÓS

O papa Bento 16, na biografia de Cristo que acaba de publicar, decretou, de sua cátedra, que Cristo separara a religião da política. Mais do que isso, participa de um dos equívocos de São Paulo – porque até os santos se enganam – o de que, se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, “vã é a nossa fé”. Cristo ressuscitou dos mortos, não em sua carne perecível, mas em sua grandeza transcendental. O papa insiste – e nessas insistências a Igreja sempre se perdeu – em que o corpo de Cristo ainda existe, em toda a fragilidade da carne, em algum lugar, ao lado de Deus. Com isso, o Santo Padre separa Cristo da humanidade a que ele pertence, e o situa no espaço da mitologia dos deuses pagãos. A afirmação mais grave do Papa, de acordo com o resumo de suas idéias, ontem divulgadas, é a de que política e religião são instituições separadas a partir de Cristo. A própria história do Vaticano o desmente. A Igreja Católica – e todas as outras confissões religiosas – sempre estiveram a serviço do poder político, e em sua expressão mais desprezível. Para não ir muito longe na História - ao tempo da associação entranhada entre os reis, os imperadores e o Vaticano, durante a Idade Média -, bastam os exemplos de nosso século. Os documentos existentes demonstram o apoio da Igreja a ditadores como Hitler, considerado, por Pio XII, como “um bom católico”. Mais recentemente ainda, houve a “Santa Aliança”, conforme a denominou o jornalista norte-americano Bob Woodward, entre o antecessor de Ratzinger e o presidente Reagan, dos Estados Unidos, com o propósito definido de acabar com a União Soviética. Por acaso não se trata de uma escolha política do Vaticano a rápida canonização do fundador da Opus Dei, como santo da Igreja, e o esquecimento de grandes papas, como João 23, e de mártires da fé, como o bispo Dom Oscar Romero, de El Salvador? A religião sempre esteve na origem e na inspiração da política, e, em Cristo, essa identidade comum se torna ainda mais nítida. O campo da razão em que a fé e a política se encontram é o da ética. A ética é uma exigência da fé em Deus e do compromisso com a vida humana. A política, tal como a identificaram os grandes pensadores, é a prática da ética. A ética política significa a busca do bem de todos. Nessa extrema exegese do que seja a ética, como o fundamento da justiça, a boa política é a da esquerda, ou seja, da visão de igualdade de todos os homens. Em Cristo, a fé é o instrumento da justiça. Quem quiser confirmar esse compromisso político de Cristo, basta ler os Atos dos Apóstolos, e verificar como viviam as primeiras comunidades cristãs, unidas pela absoluta fraternidade entre seus membros, enfim, uma sociedade política perfeita. Ao negar a essencial ligação entre a fé cristã e a ação política, o papa vai além de seu velho anátema contra a Teologia da Libertação, surgida na América Latina, um serviço que ele e Wojtyla prestaram, com empenho, aos norte-americanos. Ele se soma aos que, hoje, ao separar a política da ética da justiça, decretam o fim da esquerda. Esse discurso – o de que não há mais direita, nem esquerda – vem sendo repetido no Brasil. Esquerda e direita, ainda que a denominação venha da França revolucionária de 1789, sempre existiram. Na Palestina, no tempo de Jesus, a esquerda estava nos pescadores e pecadores que o seguiam, e a direita nos “fariseus hipócritas”, que, no Sinédrio, e a serviço dos romanos, o condenaram à morte. O papa acredita que a Igreja sobreviverá à crise que está vivendo. Isso é possível se ela renunciar a toda sua história, a partir de Constantino, e retornar ao Cristo que andava no meio do povo, perdoava a adúltera, e chicoteava os mercadores do templo. O Cristo que ressuscitou dos mortos está ao lado dos que vêem a fé como a realização da justiça e da igualdade, aqui e agora.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

ALÉM DE UM JULGAMENTO


Também aquele julgamento poderia ser interpretado como “político”, uma vez que Orestes não estava sendo julgado apenas por ter matado a mãe e seu amante. Ele havia exercido vingança política contra os assassinos de um rei e usurpadores do trono. Em Les Mouches, versão de Sartre do mito, essa razão política foi clara, e se associou à situação da França sob ocupação alemã em 1943, quando a peça foi encenada. Orestes encarnava, na metáfora sartreana, a Resistência Francesa. Ao que parece, e felizmente para Sartre, os alemães não entenderam a alegoria.

Deixando de lado a dúvida se o STF devia ou não decidir sobre esse ato do Executivo, uma vez que, ao ser provocado, o alto tribunal, em qualquer situação, é quem diz se é ou não competente, cabe, sim, discutir o problema da intromissão do governo italiano. Se o governo atual da Itália fazia da extradição uma questão de honra nacional, cabia-lhe agir pelos canais diplomáticos, e com discrição. Podemos admitir a sua pretensão de punir, de acordo com suas leis, alguém que considera um subversivo que teria agido como assassino comum. O que não podemos tolerar, é a arrogância dos italianos, que se dirigiram aos brasileiros como se fôssemos uma república bananeira ou feitoria do litoral africano.

As ofensas foram intoleráveis. Como se recorda, elas não se limitaram a criticar a decisão do asilo concedido a Battisti: chegaram a insultar o nosso povo. O deputado da Liga Norte, Ettore Pirovano, disse que não éramos um país conhecido por seus juristas, mas, sim, pelas suas dançarinas. O governo Lula tem sido paciente com os italianos. Podemos arriscar que Juscelino, em seu lugar, não só teria suspendido as relações diplomáticas, até receber as necessárias desculpas de Roma. E se estivesse no Planalto alguém da têmpera de Floriano Peixoto, as relações seriam rompidas no ato.

O que está em discussão é mais do que o destino de um homem, seja ele culpado em sua terra ou inocente dos crimes que lhe atribuem. Isso não é o mais importante, quando se trata da soberania do Estado brasileiro e da dignidade de nosso povo. A protérvia dos italianos não pode ficar sem resposta. O governo “exemplar” de Berlusconi cometeu erro crasso, ao reagir, como reagiu, à decisão de nosso Ministro da Justiça. Ao fazê-lo, provocou a natural reação de muitos setores da vida brasileira, que seriam indiferentes à sorte de Battisti. E levou esse erro ainda mais longe, ao dirigir-se ao Supremo Tribunal Federal para, nele, contestar uma decisão do poder executivo nacional. Se ele recorresse ao Tribunal de Haia, acataríamos, com todo o respeito, o seu direito em fazê-lo. Tanto é assim que o anúncio do governo de fato de Honduras, de que recorreria à Corte de Haia contra o Brasil, não causou qualquer espanto.

Bater às portas da nossa Suprema Corte como fizeram os italianos, é aleivosia sem precedentes em nossas relações externas. E essa atitude não se modificou. Ao enviar ao Brasil seu representante, Ítalo Ormanni, chefe do Departamento de Justiça do Ministério da Justiça Italiana, a fim de assistir ao julgamento, Roma reafirmou a intenção de constranger os ministros do Supremo com a sua presença.

Conforme a interpretação de eminentes juristas, a decisão do STF, nesse caso, não é a final. O Presidente da República pode agir conforme lhe facultam a Constituição e as leis, e negar a extradição, sem que isso seja ato de hostilidade contra o Supremo.

É estranho que muitos se sintam preocupados com a Itália. Sob Berlusconi, os governantes de um país que conheceu alguns momentos de esplendor na Historia, não se encontram em condições de dar lições a quem quer que seja.

A EUROPA E A LIBERDADE

A liberdade só existe se for ativa, isto é, se servir para o homem exercer sua vontade, não apenas no domínio da vida pessoal, mas no conjunto da sociedade. Por isso, os gregos desdenhavam os conformistas, os que não participavam das decisões coletivas. Esses, ao não exercer a liberdade, a desmereciam. Eram, em sua indolência política, submissos à vontade alheia. A liberdade é, assim, um sentimento ativo. Não é uma situação que se aceita, mas que se constrói. Para lembrar o texto clássico do Santo Tomás de Aquino, a propósito do pensamento político de Aristóteles, é alguma coisa que edificamos enquanto nela pensamos, por isso, a política é uma ciência (ou seja, um conhecimento) moral, e não técnico. Isso quanto à liberdade. E o que podemos entender como Europa? A unidade continental tinha duas idéias básicas. Uma era a da libertação do totalitarismo, outra, a recuperação do poder espiritual do continente sobre o mundo, mediante a reconstrução de sua economia e de seu saber. Nesse sentido, a União Européia foi o resultado da consciência de uma necessidade histórica, trabalhada por alguns excepcionais homens de Estado, de um lado e do outro do Reno.

A queda do muro de Berlim favoreceu a expansão da União Européia, que nascera como a Europa dos Seis em 1957, com o Tratado de Roma. Essa ampliação, sem embargo, vem trazendo problemas de identificação do que seja hoje a Europa, e o que sejam as sociedades nacionais que a integram. A unificação não é completa, começando com o problema da moeda única. Para os ingleses, a libra é, como a monarquia, símbolo sagrado de soberania. Mas não se cinge à Europa a grave crise do homem contemporâneo. Os Estados Unidos estão se confrontando com o mesmo problema de identidade. O major que matou os seus companheiros de farda de Fort Hood é, ou não, um americano? Ele matou concidadãos, ou atirou em inimigos do Islã? A grande vantagem dos Estados Unidos é a de ser, desde os peregrinos do século 17, uma pátria pela escolha, não pela fatalidade do nascimento. Daí o seu extremo nacionalismo: todo Ersatz é sempre mais exacerbado do que o modelo. Essa realidade começa a ser posta à prova. Não teria o major matado simplesmente por fadiga de viver em uma sociedade corroída pelo egoísmo? Os adolescentes que matam seus colegas, lá e alhures, por que o fazem? De acordo com eminentes psicanalistas, quando alguns homens odeiam os outros homens, de forma geral, é porque, no fundo, odeiam-se a si mesmos. Todo assassino é suicida, e todo suicida, um assassino.

Segundo os moralistas da escola que expulsaram uma aluna em São Paulo, ela vestia roupas provocantes. Qual é a escala que separa a sedução da provocação? Quais são os limites para que uma pessoa possa expor ou não o seu próprio corpo? Em uma sociedade erotizada, principalmente pela propaganda comercial, que usa o corpo feminino como apelo de consumo, é natural que muitas mulheres se sintam estimuladas a vestir-se como os modelos dos anúncios. Em nosso tempo, o apelo ao erotismo está em quase toda parte, na música, na literatura, na televisão e no cinema.

Têm sido freqüentes os atos de intolerância contra os alunos diferentes, seja pela cor, pela condição social, pelas dificuldades de locomoção ou de expressão. É hora de colocar limites severos a esses atos estúpidos – em nome da essencial liberdade de ser.