segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

DA DESIGUALDADE ENTRE OS ANIMAIS

Eric Arthur Blay - um dos revolucionários dos anos 30 que se desiludiram com o regime stalinista - foi, sob o pseudônimo de George Orwell, sério combatente contra o totalitarismo. Sua fábula Animal Farm popularizou a frase sempre repetida, para definir a impunidade dos governantes: todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros. A moral é óbvia: todos os homens são iguais, mas alguns deles são mais iguais do que os outros. Sílvio Berlusconi, pelo fato de ser primeiro ministro da Itália, foi considerado, por seus advogados, primus supra pares, e, não, inter pares, ontem, quando se reuniu a Corte Constitucional, em Roma, a fim de examinar a constitucionalidade da Lei que o desiguala. Tal como em outros países, que conhecemos, há a intenção de blindar os ocupantes de altos cargos públicos contra as leis penais. É a reminiscência da irresponsabilidade dos reis, característica das monarquias. Os reis se consideravam acima das leis que, além disso, beneficiavam a nobreza e o clero no confronto com os pobres. Rex est lex, disse James I ao Parlamento, abrindo a cisão que, depois de sua morte, levaria o filho, Charles I, ao encontro do carrasco. A República consagra o enunciado contrário, o de que Lex est Rex: a lei é soberana. É – ou devia ser – como estamos vendo na Itália e alhures.
A Corte Constitucional decidirá hoje - se é que decidirá, tantos são os interesses que escoram o clownismo do magnata e político milanês – se na Itália Lex est Rex, ou não. A decisão é do interesse direto dos italianos, que se dividem entre os que preferem pagar o preço do conformismo, e os que não suportam mais o debochado Berlusconi na chefia do governo. A eles, no alto tribunal, ou fora dele, caberá decidir, de acordo com sua soberania, o destino do premier e o destino da República. O mais importante é pensar no princípio fundamental do direito, que torna todos os homens iguais diante da lei, e a tentativa de recuperação, pelos governantes republicanos, do privilégio dos reis absolutistas. No Brasil, tivemos, com a constituição imperial, a presença do poder moderador e a impunidade absoluta do soberano. O artigo 99 é claro: A Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Ele não está sujeito a responsabilidade alguma. Não obstante isso, os Ministros de Estado (artigo 133) estavam sujeitos à responsabilidade pelos crimes de traição, peita, suborno e concussão; pelos atos contra a liberdade, a segurança e a propriedade dos cidadãos e pela dissipação dos bens públicos. O artigo 135 era duro: Não salva aos ministros da responsabilidade a ordem do Imperador vocal, ou por escrito. Em suma, os ministros tinham que obedecer ao monarca; no caso em que, ao obedecer-lhe, cometessem um ilícito, não podiam recorrer ao dever da obediência. A inviolabilidade dos reis, como sabemos, era imposta pelas leis e pela tradição. Isso não os livrava dos complôs palacianos para matá-los, nem da justiça do povo, que se exercia, como se exerceu, nas duas grandes revoluções da Idade Moderna, na Inglaterra de 1640 a 1649, e na França de 1789 a 1799. Em ambas, de nada valeu a inviolabilidade de seus reis, que nelas perderam a cabeça.
Enquanto Berlusconi tem se esquivado da justiça e de articulação parlamentar que o destitua, recrudesce a reabilitação do fascismo na Itália, com o perigo de que venha a tomar conta da Europa, onde não faltam grupos ativos da extrema-direita. Recente documentário do cineasta italiano Cláudio Lazzaro – Nazirock – mostra como já não se trata de ameaça, mas de realidade. Entre 2005 e 2008, houve 262 ataques violentos contra centros sociais, imigrantes e grupos de gays e lésbicas. A violência – que também se registra nos antigos paises socialistas – é particularmente odiosa contra os ciganos, negros, latino-americanos. Mais grave ainda – porque demonstra a grande adesão popular aos fascistas – foi a eleição de Gianni Alemanno, conhecido arruaceiro contra as esquerdas, para sindaco (prefeito) de Roma.
A tragédia da Itália tem sido a ausência de forças políticas de centro-esquerda, com tal peso que possam conter a nostalgia do fascismo de Mussolini, que se nutre dos velhos fantasmas do medo contra o diferente. Em suma, do racismo. A decisão da Corte de Roma está sendo aguardada com ansiedade pela consciência humanística da Europa.

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